segunda-feira, 4 de junho de 2012

Sobre Cafés - parte 2


Weredog
Escultura de Mahen Naidoo

Na quarta-feira às oito horas da noite eu já estava devidamente aparamentado à espera de que a porta do sebo se abrisse. O Inércia ficou estacionado na frente do lugar caso eu tivesse de fazer uma fuga rápida. A Jéssica carregada até o talo no coldre. E a Lodo número 1... essa eu escondi no sapato, não nasci ontem. Hehe!
A porta abriu.
Um senhor de uns 78 anos de idade me atendeu muito educadamente.
- O rapaz deve se chamar Linhares?
- E o senhor...
- Alfredo. Alfredo Roca.
- Muito prazer, Seu Alfredo. Eu vim...
- Sim. Estão todos lhe esperando, mas antes eu gostaria de lhe oferecer um pouco da hospitalidade deste sebo.
Ele foi a passos bem lentos até atrás do balcão e retirou um bulezinho de chá com duas xícaras.
- Açúcar?
O clima do lugar era sinistro. Sabe esses sebos velhos do centro da cidade que vão acumulando tudo o que é possível, numa espécie de ânsia de que um dia alguém vai entrar lá e comprar alguma dessas coisas velhas? O sebo me parecia o navio-fantasma-das-quinquilharias. Até fiquei imaginando que o capitão do navio era esse velho, e que, na verdade, ele estava disfarçado de velho, porque por baixo daquela calça verde-musgo e daquele pulôver marrom morava um ser feito de pedaços de coisas que foram grudando em seu corpo:  Capitão Quinquilhas. Acho que era esse o seu verdadeiro nome.
- Não, por favor. Isso faz um mal desgraçado.
- Claro que sim.
O velho Quinquilhas ficou me olhando no olho enquanto disse isso.
Muito estranho. Tentei desbaratinar.
- O senhor por acaso não tem por aí umas revistas velhas?
A sua expressão mudou da água pro vinho. Como se eu tivesse dito as palavras mágicas que acessaram alguma paixão do velho. Os olhos dele brilharam de repente.
- Não fale assim, meu jovem. Aqui dentro não temos nada de velho, como você deve estar pré-concebendo. Este sebo só trabalha com raridades. Tratamos tudo aqui com muito respeito
tratamos                                                      
e cordialidade. Mas, vamos deixar de tró-ló-ló. O que você procura?
- O senhor conhece...
- Oras, bolas, por favor, me chame de Alfredo. Somos amigos agora. Gostamos das mesmas coisas.
que exagero                                  
- Ok, Mr. Alfred. Como quiser. Eu vi aqui nessa prateleira que você mantém uma coleção muito extensa da HQ Fictions.
- Na verdade, falta-me apenas a número 23.
esse velho filho-da-puta fala igual ao ridículo do Harold
- Puxa, que legal. E é muito difícil conseguir essas revistas?
- Siiimm. Muito difícil. Por exemplo, essa 23, só existe na Dinamarca e está de posse de um colecionador chamado Troels Overdal, que tem um museu de revistas chamado KontraMagasin.
- E porque você não compra dele?
- Hahaha! Não é bem assim que toca essa orquestra, meu caro. Quem tem uma revista rara como essa não chega nem a contar que tem. Imagine só o que aconteceria se descobríssemos onde estão escondidas todas as revistas raras do mundo? SERIA O CAOS!
O velho começou um discurso inflamado e já estava naquele ponto onde tudo começa a sumir da cabeça. Ficou de pé no balcão e começou a fazer a Revolução dos Gibis. Fazia tempos que eu não via alguém tão apaixonado pelo que faz. Na verdade, completamente obcecado. O nosso Capitão Quinquilhas era bem doidão.
- Mas, olha só, Seu Quinqui... digo, Seu Alfredo, eu preciso encontrar umas pessoas que estão aí nos fundos do sebo, então você me dá licença que...
O cara não estava nem aí pro que eu estava falando. Ficou lá em cima do balcão vomitando um monte de palavras em várias línguas como se o mundo já tivesse acabado e fosse esse  o momento de ressurreição. De qualquer forma, não me importei nada com isso, e até estava achando legal ficar por ali assistindo o showzinho de camarote, mas o fato é que eu saquei na hora o que estava rolando naquele lugar.
Havia uma porta aos fundos do sebo e foi por ali que eu fui. A porta abria prum corredor escuro e sem interruptores. Entrei e fui caminhando devagar. Aos fundos ficou apenas a voz do velho ecoando, ecoando, e aos poucos sumindo, sumindo, até se tornar um fantasma.
a julgar pelo formato das mãos e do nariz que no Harold e no Capitão Quinquilhas é exatamente igual e pelo fanatismo com que lidam com os gibis é óbvio que são no mínimo parentes
Fui tateando pela parede da direita e cheguei em uma outra porta. Nada de campainhas, nem trincos, nem nada. Apenas uma porta que, pelo tato, consegui identificar que havia diversas figuras em alto-relevo.  A porta abriu.
- Boa noite, Detetive Linhares.
como ele sabe?
- Por favor, entre. Temos um lugar reservado para você.
que lugar bizarro
O Harold me recebeu na porta escura sem dar sinais de dúvida nem preocupação de como eu teria chegado até ali. Entrei logo atrás dele. Não pestanejei, nem quis dar sinais de que eu estava lá para investigá-lo. Por outro lado, acho que todos ali já sabiam de tudo e estavam apenas melindrando, deixando as coisas veladas pruma espécie de gran finale.
A sala era grande e com diversas estátuas de deuses e figuras míticas, formas alegóricas de bichos conhecidos da natureza e outros bem estranhos com várias cabeças, múltiplas pernas e corpos, alguns até impossíveis de ser imaginados, e muitos armários, todos em madeira, uma madeira de cheiro forte e característico.
araucária
Todos eles entulhados de revistas. Devia existir ali pelo menos uns três mil exemplares de revistas em quadrinhos.
- Imagino que são todas raras...
- Sim, raríssimas.
O Harold estava usando uma capa marrom com uns escritos nas mangas e nas costas, e havia pelo menos mais uns trinta caras iguais a ele com os mesmos mantos mas sem escritos, acho que um tipo de hierarquia. E é lógico: nada de mulheres.
típico
- Sente-se aqui, Linhares.
Ele me levou até uma mesa ao centro da sala, puxou uma cadeira pra mim e se dirigiu à ponta da mesa. Um cara sentou do meu lado e já foi logo puxando papo.
- Espero que tenha gostado do café.
- Do café e do Capitão Quinquilhas.
- Senhor Alfredo Roca?
- Sim, o velho revolucionário que ficou berrando lá na frente. Muito engraçado o velho, ele me lembrou muito o meu avô paterno quando ele me...
- Ele é o nosso mentor. Um dos maiores colecionadores de Graphic Novels da terra. Foi ele, junto com seu neto, Harold, que montou a nossa fraternidade.
sim meu caro Chato eu tenho boa imaginação pra essas coisas
O negócio é que eu queria provocar um pouco esses caras pra ver se algum deles pisava no tomate e me dava de bandeja uma pista do verdadeiro negócio que estava rolando ali dentro. Eu já tinha certeza de uma coisa: do parentesco do Capitão e do Harold. Mas, o culto às revistas raras elevou meu ânimo. Havia algo ali que não tinha explicação: porque um bando de idiotas se reúne uma vez por semana pra idolatrar revistinhas em quadrinhos?
- Muito interessante...
- Réchaud. Pode me chamar de Réchaud.
- Muito interessante, Sr. Réchaud.
Nesse momento, Harold estava posicionado em uma das pontas e empunhava uma adaga dourada com o cabo cheio de pedras preciosas. Ele colocou adaga sobre a mesa e começou a falar em uma língua estranha. Eu não conseguia entender nada.
esses filhos da puta tão de sacanagem
O cara falou uns dez minutos. Daí, se dirigiu a mim como se eu tivesse entendido tudo o que ele tinha falado.
- Pode começar, Detetive Linhares.
começar o que porra?
Claro que ele deve ter dado indicativos da minha resposta enquanto dava aquele monólogo chato que eu deveria ter entendido. Então, mandei uma que até eu fiquei surpreso.
- Eu sou a adaga. Ela habita em mim.
Foi o que veio. Ridículo pra cacete, man! Mas atrás de um sebo na treze de maio com trinta marmanjos vestidos de monges franciscanos falando de gibis...
- a jaký klíč
E começou uma frase atrás da outra. Eu não tinha ido até lá pra isso, mas o Medeiros tinha me contratado pra isso e eu não estava a fim de levar essa bola na trave pra casa.
- A mão que segura a adaga.
- a co je ještě důležitější prst ruky
- O meu dedo.
Não sei porque eu estava dizendo isso mas, de alguma forma, eu estava certo, e a adaga sobre a mesa começou a brilhar. Eu não estava acreditando no que eu estava vendo. Os caras começaram a se levantar e a caminhar em direção à ponta da mesa. eu fiquei sentado, não estava entendendo nada, e como diria o poeta, quando você não sabe o que fazer fique parado. Todos ficaram olhando pra mim.
- nahoru, ke mně!
Agora sim eu estava fodido e mal pago.
o que esse safado falou
Continuei seguindo o conselho do poeta.
- nahoru, ke mně!
Rolou um silêncio dentro da sala. Acho que o povo ali estava sacando que era tudo uma farsa e que o melindre tinha acabado. Então, seguindo o conselho do meu amigo e sócio Fúlvio Lopes numa situação de crise, man, mesmo que você esteja errado, saque a arma primeiro, meti a mão no casaco e a Jéssica veio correndo ao meu encontro.
- Porra, Linhaça, achei que eu não sair daqui de dentro nunca!
- Relaxa, amorzão! Agora a parada é com a gente.
Levantei, meti o pé na cadeira e subi na mesa sagrada.
- Chega desse blá blá blá! Agora vamos conversar em Jessiquês! Todo mundo se joga no chão porque acabou a festinha!
Eu tinha certeza de que aquela atitude era a pior a ser tomada num lugar com trinta caras, e eu nem sei porque estava fazendo aquilo, mas me parecia que era a única coisa certa a se fazer. Enfim, vinte e nove caras deitaram no chão, menos o Harold. Ele continuou ali, olhando pra mim Bratrstvo je věčná. Aquilo começou a me irritar de uma forma estranha. Fiquei muito puto. krev je posvátná Abri a porta por onde eu tinha entrado Puzzle je slovo e fui catar o velho que estava lá fora mais calmo tomando seu café. smysl. Arrastei o Seu Quinquilhas pela gravata até lá dentro. víra aby nedošlo k rozpadnout
- Traduz!
- O que, meu filho? Qual é o problema?
- Traduz o que o teu neto tá falando!
- Mas...
- Vai, velho!
- Ele está entoando o cântico da ressurreição eterna. Quando a irmandade é ameaçada todos se agrupam em torno do líder e ele entoa esse cântico para que através da fé que todos têm no poder eterno da palavra, não sintam a dor do mal que pode afligi-los.
BAM!
Mandei um tiro pra cima e o idiota do Harold se calou.
até que enfim                                   
- Troço mais chato, né Linhaça?
- Pois é, Jéssi. Mas fique calma, já vamos pra casa.
O velho se encolheu debaixo da mesa. O resto do bando continuou em silêncio. O Harold parecia que tinha engolido um pombo.
- Olha aqui, meu caro Harold, na situação em que você se encontra você deveria sentar e relaxar um pouco.
Silêncio
- Velho, traduz!
O velho começou a traduzir.
- použít nůž, aby ho zabili
- Acho melhor vocês começarem a contar aqui pro Linhares o que acontece aqui dentro…
- je pro použití dýky
Nesse momento eu já estava começando a guardar a Jéssica, porque o clima tinha se apaziguado ali dentro, mas o Harold achou que podia salvar a tal irmandade do gibi. Só posso dizer que ele se fodeu. Tentou bancar o herói e levou um tiranbaço no meio da testa. Foi pegar a adaga pra tentar algo imbecil e acabou indo pro inferno antes do que ele desejava. O resto nem se mexeu. Achei isso estranho. Acho que a galera, na verdade, estava cagando um pro outro ali dentro. Pelo jeito estavam querendo mais é sair dali vivos e que se foda esse monte de gibis velhos e essa irmandade nerds.
O Capitão Quinquilhas, que até então me parecia um velho doidão, foi por debaixo da mesa até à ponta onde o Harold estava, e emergiu de repente com a adaga na mão. Não era mais o velhinho do café. Ele foi se transformando numa espécie de aberração, um negócio meio lobisomem. Estava com a cara toda rasgada e com sangue vazando por um monte de cortes espalhados pelo corpo inteiro. A roupa tinha rasgado inteira e o corpo estava coberto de pêlos.
- Linhaça, ele tá muito parecido com aquele cara de Guaíra, você não acha?
- É verdade, Jéssi. Bem que eu achei que já tinha visto esse bicho antes.
O Capitão Quinquilhas tinha se transformado numa aberração gigante. Um licantropo metade Rottweiller, metade lobo, de três metros de altura de mais ou menos três toneladas e ainda por cima com aquela adaga na mão. Eu e a Jéssica já conhecíamos tipinhos como esse, mas de qualquer forma é sempre um prazer poder revê-los assim, tão intimamente.
- Olha Seu Lobo, você deve tá se perguntando porque o Harold não levantou ainda, não é verdade? E não adianta vir com essa adaguinha, bancando o nervosão, que já tá tudo dominado, ok?
VLÓSH!
O bicho voou pra cima de mim e me acertou um chutaço no peito. Eu devo ter voado uns cinco metros. Só deu tempo de levantar a cabeça e empunhar a Jéssica.
PAM!
Mais uma porrada. O cara ia me destruir rapidinho se eu não acertasse pelo menos um tiro nele.
é com você Jéssica
Eu tinha carregado a Jéssi com balas de prata por precaução. Então, fechei os olhos e fui na dela.
BAM!
BAM!
BAM!
Quando dei por mim havia um corpo em cima da mesa com dois tiros no peito. Era o velho Quinquilhas.
- É uma pena, Seu Quinquis, eu tinha me afeiçoado com você.
Ele tinha voltado a ser o velhinho legal lá da frente. O Harold ainda estava lá deitado. Tínhamos agora dois corpos.
Usei o telefone do sebo pra falar com o Medeiros. Contei-lhe a história e marcamos um café na cafeteria de domingo. Prometi a ele que tomaríamos um belo Sumatra quando nos encontrássemos. Ele ficou muito feliz que a revista agora estava sã e salva.
Desliguei o telefone.
- Pena que você errou um tiro.
- Claro, né! Você não parava de se mexer!
Comecei a caminhar pelo sebo. Dei uma rápida olhada no lugar. Abri a revista e dei uma folhada na história do começo ao fim. Estava tudo lá.
- É isso aí, Jéssi. Acho que fizemos tudo como mandava o conto.
- Ok, amorzão. Vamos embora.
Como no final do conto da revista, entrei no Inércia e fui pro escritório descansar.

FIM

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Sobre Cafés - parte 1


Capas Antigas da Revista LODO


O telefone tocou pela manhã: Urbano Medeiros.
- Lopes e Linhares Detetives Associados.
- Bom dia, Linhares. Aqui quem fala é o seu amigo Urbano Medeiros.
Grande amigo, diga-se de passagem. Um dos maiores e mais honestos jornalistas que já conheci em minha vida. Uma pessoa de índole intocável e um ser humano fabuloso, pois, se tem uma coisa que me tira do sério são esses jornalistas de porta de celebridade, esses merdinhas que passam a semana pensando em algum tipo de pergunta idiota pra se fazer pruma pessoa idiota, e publicar as maiores ignomínias e mentiras sobre nós, patéticos seres humanos, donos dos fatos cotidianescos que enchem páginas de jornais. Posso afirmar, sem nenhum remorso, devido à proporção de pessoas boas nesses ramos ser baixíssima, que uma das minhas maiores decepções com Deus é a d’Ele ter enchido o mundo com advogados, jornalistas e publicitários, nessa ordem, respectivamente. E isso não é Estética da Gracinha. Talvez, o Diabo goste. Pode ser.
- Grande Urbano, o que me conta? Precisando de uns servicinhos extras?
- Olha, por incrível que pareça, estou ligando pra te convidar prum fato incomum.
- Um enterro de anão, talvez?
estética da gracinha            
- Não.
Disse rindo com o canto da boca, como se tivesse achado o meu comentário esdrúxulo.
– Na verdade, marquei uma reunião com alguns amigos no Lucca Cafés do Soho. Dei uma limpa nos armários lá de casa e gostaria de devolver algumas coisinhas que fui emprestando pelo decorrer da minha vida.
- Genial. Mas, você tem alguma coisa que é minha? Eu mesmo já não tenho quase nada.
- Pois é, Linhares, eu não tenho nada seu, mas eu te liguei pra ter você na mesa com os amigos de antigamente, rever as pessoas do passado, contar umas estórias engraçadas, enfim, pra sairmos um pouco da penumbra da vida real. Porra, somos amigos!
- Claro, Urbs. Estou lisonjeado com o convite e aparecerei sem dúvidas. Quando é?
- Domingo, no Lucca do Soho, às 16 hs.
- Fechado, meu querido.
- Grande abraço.
- Abraço.
E desligamos.
Domingo, às 17 hs, cheguei no tal café do Soho. Um dia de sol dos infernos. O calor estava insuportável. Curitiba tem dessas, num dia temporais tsunâmicos e todos viramos sapos, e no outro um sol de amolecer asfalto e viramos pasta de amendoim. A preguiça se torna lugar comum e todos rumam para os cafés e parques da cidade para fazer nada e beber e paquerar e, como eu, encontrar velhos amigos.
Fui a pé. Passei no escritório para ajeitar umas coisas da semana que vem e rumei para o Soho. O escritório não fica muito longe desse bairro e achei melhor caminhar e dar uma desenferrujada. É um bairro bonito, com uma grande quantidade de árvores frondosas que formam belos corredores verdes nas ruas. De ruas estreitas e antigas, foi o bairro das célebres famílias da cidade, de políticos, empresários, gente importante. Estou falando dos milionários, dos caras que mandam no negócio. Esse bairro foi construído com estes alicerces: o de ser o “nosso lar”. Tenho certeza que sim.
Trinta minutos de caminhada em linha reta pela Comendador Araújo – que é uma das ruas mais charmosas da cidade, com suas casas antigas e seus passeios de petit-pavé formando grandes pinheiros no chão e seus postes de luzes amarelas, que de dia ficam desligados, mas à noite dão um charme incomparável ao lugar, e quem passa por ali depois das oito da noite sem dúvida nenhuma sente uma certa nostalgia ou até mesmo pode se confundir de estar andando em alguma boulevard francesa – e eu viro à direita e avisto o café que o Medeiros me indicou.
O tal café era bacana. Um lugarzinho escondido entre alguns pés de café e cheio de pessoas agradáveis; uma varanda externa com várias mesas de madeira, e muitas pessoas normais papeando. Olhando assim, já começo a me sentir um peixe fora d’água. Não sou muito dado a essas aglomerações. Muito blá blá blá e pouca conversa, se é que você me entende, mas entrei e comecei a procurar pelos amigos de outras datas. O café é muito maior por dentro do que parece por fora: dois andares e três mezzaninos que o recortam por dentro, com um vão central e uma escada que conecta todos os andares. Logo na entrada o bar à direita e algumas mesas à esquerda. Um mezzanino para a direita e para a esquerda e para baixo um andar abaixo da terra
muito interessante
com máquina de torrar café e alguns expositores com cafés de diversos lugares do mundo
muito interessante, mesmo!
que depois eu ia me ocupar porque tenho as veias cheias desse troço, mas que por enquanto não prendeu minha atenção, pois estava à procura de Urbano.
bom esse nome parece coisa de cinema 
Como não conhecia ninguém fui direto ao óbvio: comecei por esse piso de baixo procurando pelos convivas. Bingo! Lá estavam alguns dos convidados que diferente de mim não se atrasaram. Pessoas ligadas ao cinema, a literatura, ao teatro, e otras cositas más. Gentes de vários ramos da arte, digamos assim. Pessoal importante, mas do qual eu me desvencilhei havia alguns anos quando e resolvi ser eu mesmo, ao invés de correr atrás de algo com a qual não me identificava: coisas de academia.
Urbano Medeiros estava num canto de papo com o Bernard que hoje tem dois restaurantes maravilhosos na cidade. Estavam fechando a assessoria de imprensa para o ano corrente e o seguinte quando eu cheguei acabando com o papo.
- Grande Bernie! Quanto tempo!
- Linhares, Linhares. Parece que o tempo passa mais rápido pra você. Você está com uma cara de...
O Bernie falando desse jeito me fez refletir sobre o porque eu simplesmente parei de conversar com determinadas pessoas nessa vida
completo idiota                                 
- Mais velho?
Eu disse já interrompendo o papinho.
- Não é bem isso...
- Mas é isso, Bernie. Trabalhar com a escória dá nessas coisas.
Cortei a conversinha de domingo e fui dar atenção ao Urbano.
- Obrigado pelo convite, Medeiros. Mas como você pode notar algumas pessoas não estão aqui para serem amigas.
Já saindo de fino. Ele riu maliciosamente, bom jornalista que é. Já havia sacado tudo.
- Esquece o Bernard. Eu te chamei aqui porque quero que você me ajude com uma pessoa. Outra coisa, aqui está aquilo que você me emprestou há uns dez anos, lembra? Muito obrigado.
Achei estranho, pois tenho certeza de que não há nada meu com o Urbano. Mas pelo tom da conversa sei que ele está armando alguma. Ele me estendeu um pacote de papel um pouco pesado. Aceitei de bom grado, bom fingidor que sou. Dei um abraço nele. Ele me convidou para um café.
- Sim. Vamos pegar um café no andar de cima.
Claro que não poderíamos falar em público. A coisa devia ser mais importante do que simples devoluções de antigamente. Eu já desconfiava de alguma coisa, o Urbano jamais me convidaria para vir aqui encontrar esse bando de idiotas. Fiquei de olhos abertos com as pessoas e já saquei qual é a do lugar e a do encontro, mas deixei o Medeiros falar. Encostamos no balcão e rapidamente nos serviram dois cafés puros, coados, e da Guatemala. Sensacional! O perfume do café era algo de sublime. Jamais tinha sentido algo assim com nossos cafés brasileiros. Um aroma cítrico de flor de laranjeira e uma suavidade de flor no sabor que me fizeram entender porque eu voltaria a essa casa de cafés pelo resto da minha vida, ao menos uma vez por dia.
- O negócio é o seguinte. Eu suspeito de que alguém aqui está a fim de me passar a perna, por isso armei este esquema de devolução de coisas e te chamei.
- Direto ao ponto, Medeiros.
- Eu tenho algo raro em meu poder e que um dos convidados quer, mas não sei quem é.
- E eu tenho de identificá-lo em meio a todos os convidados e quebrá-lo de pau e depois prendê-lo, ou vice-versa.
- Eu não sei se a pessoa é homem ou mulher. Portanto, cautela.
- E do que se trata?
- Do primeiro exemplar da Revista Lodo, que foi editado há uns 30 anos atrás e ninguém mais a viu. O exemplar que está comigo era de um amigo meu, o Vianinha, você deve lembrar dele, da época de faculdade. Eu revirei os sebos, a casa dos familiares, liguei pra todo mundo que conhecia o Vianinha e ninguém soube dar notícias nem donde ele está, nem do fim das revistas, porque todas sumiram.
- E essa tua revista? Como você a conseguiu?
- Comprei num leilão pela internet. Num site de compra e venda de livros, uma espécie de sebo eletrônico, de um cara do Rio de Janeiro que disse que o pai tinha o exemplar porque conheceu o Vianinha na época do lançamento da revista, mas daí o pai do cara faleceu e o moleque acabou vendendo tudo o que o pai tinha e eu dei a sorte de conseguir o exemplar nesse sebo.
- Ok.
- Mas, de uma certa forma, ninguém sabe se essa revista está aqui com você ou não?
- Exato. Portanto, quero que você mantenha os olhos abertos pra qualquer atitude suspeita.
- Esta aqui é uma atitude suspeita.
- Por isso pedi para que...
Enquanto ele falava, um dos meninos do bar estava tirando do congelador uma outra raridade, o Maracolate. Uma torta congelada de maracujá com chocolate que a mãe do irmão do Urbano, Dona Gleuza, tinha inventado há um tempo atrás, quando ela ainda tinha uma pousada na praia. Muitas pessoas iam de Curitiba para a praia só pra comer a tal da torta. Inclusive, a pousada fechou alguns anos depois e todos voltaram pra Curitiba e abriram um negócio de tortas. O Medeiros foi pra faculdade, que foi paga com o lucro das tortas, mas, até onde eu sei, o negócio ainda está de pé e de vento em popa. Além da torta trouxeram junto um monte de pratos e talheres, os quais ele indicou que eu o ajudasse.
- ...os meninos me trouxessem a torta agora. E você vai me ajudar com os talheres.
Muito astuto. Tirou a atenção de todos com essa desculpinha esfarrapada de ir buscar uma torta e me arrastou com ele. Ele já contava com meu atraso, o que deu tempo de entreter os convivas por um tempo até ter a oportunidade de ir buscar a torta e, talvez, até cantarmos um parabéns pra você. Mas, de qualquer forma, fiquei atento aos sinais que as pessoas estavam me dando. A minha própria presença já é algo que chama a atenção e todos ali sabiam quem eu era e o que eu fazia. Voltamos para a reunião. Mas, antes de descermos novamente, tomei o meu Guatemala. Maravilhoso!
Colocamos a torta sobre a mesa e a mulher do Urbano, Mary Anne, grande artista plástica e designer da cidade, com trabalhos expostos em vários países. Uma mulher de um metro e sessenta, morena, de cabelos escuros e olhos negros, profundos e marcantes. Muito inteligente e experta se prontificou a nos ajudar a servir a todos, me liberando, assim, preu usar meus dotes vouyeurs.
Passamos mais algumas horas no recinto nos acabando com cafés de diversos países e alguns brasileiros, um mais maravilhoso que o outro, e com o Maracolate, que foi o assunto da tarde. Todos querendo roubar a receita que o Rafa de bate-pronto já colocava: “Sei apenas que tem maracujá e chocolate”. É por aí Rafa, nada de dar segredos de mão beijada pra esses safados. Porque pra mim, agora, todos eram uns safados até que se provasse o contrário.
O fato é que houve poucos sinais de interesse ou algo do gênero que envolvesse a tal revista. Captei poucas coisas nas pessoas, mas algo me chamou a atenção: um rapaz de uns 35 anos, cabelos claros, olhos castanhos, um metro e noventa, levemente gordo (uma típica pança de cerveja, quero dizer), que a todo momento conversava com as pessoas sobre histórias em quadrinhos. Não que isso seja motivo para ele ser o larápio, mas o seu interesse saudosista em falar sempre sobre as revistas do passado começou a me chamar a atenção. Fui até ele.
- Você que é Harold? O cineasta que dirigiu “Até que a vida nos separe”?
- Isso mesmo.
Num tom pedante, típico dos idiotas que se acham os tais porque já fizeram alguma merda no cinema.
- Muito prazer, Linhares.
- Humm...
Esse “humm...” me fez pensar na cena da minha mão quebrando o seu maxilar em dois lugares, e do seu corpo caindo sobre o Maracolate depois que eu o chutei sem piedade nas costelas. Mas eu pensei no Maracolate e desisti.
- Vi você comentando sobre os gibis...
- Graphic Novels.
A interrupção conceitual sobre uma porcaria de gibi ser um gibi, ou um HQ ou uma Graphic sei lá o quê, me fez repensar a cena do Maracolate sendo destroçado por um corpo que cai. Contive-me.
- Isso mesmo. Eu tenho uns exemplares que eu gostaria de doar ou vender, ou qualquer coisa que os valham, porque meu filho...
Essa de filho foi ótima. Já comecei a fazer a história do meu filho na cabeça, caso precisasse usá-la: 16 anos, mora com a mãe em Paranavaí, gosta de futebol, RPG, quadrinhos, é fã de heavy metal, não vai à praia, tem uma namorada que é escritora, vai cursar publicidade – pelo menos é o que ele pensa que vai fazer – e tem, o que é mais importante, uma mãe chamada Denise. Pra começar seria isso. Depois eu penso melhor como é essa minha família.
- ...tá indo estudar publicidade na Alemanha e resolveu dar cabo em algumas coisas dele. E eu me lembro dele ter comentado que tinha umas velharias guardadas. A Denise, minha ex-mulher, até comentou comigo se eu não conhecia ninguém que gostaria de dar uma olhada nesses troços.
O Harold até começou a gostar um pouco mais de mim depois da história dos gibis.
- Linhares, você disse?
- Isso mesmo.
- Bom, Linhares, eu sou um profícuo colecionador...
um aproveitador barato               
- ...de HQ’s e Graphic Novels...
um nerd e um chato
- ...e tenho uma coleção vastíssima com mais de duas mil revistas nacionais e internacionais...
começou a sessão “eu pagando pau pra mim mesmo”
- ...e sou o presidente da SGNB...
uma sigla muito importante
- ...Sociedade Graphic Novels Brasileira..
um agrupamento de caras babacas que conseguem passar um dia inteiro discutindo o raio do porque o cara fez um traço com a mão esquerda e não com a direita mesmo sendo destro
- ...e acredito que as revistas do seu menino possam nos interessar e muito.
- Certo. E você quer que eu peça pra Denise as enviar pra vocês? Você quer dar uma olhada nas revistas?
- Claro, meu amigo.
Amigo?! Esse cara já estava passando do ponto. Eu realmente gostaria de dar um sopapo de mão aberta na sua cara.
- Podemos marcar uma tarde no nosso escritório e vermos as tais revistas.
- Ok. E quando pode ser?
Eu fiz essa pergunta já querendo me desvencilhar desse cretino. Eu já estava desconfiando dele, mas gostaria de dar um tempo na conversa para analisar o seu gestual a partir desse momento. Acho que ele ia começar a dar sinais de sua própria denúncia.
- Que tal na quarta-feira? Teremos a reunião mensal da SGNB, e talvez você possa nos levar as revistas para análise.
- Perfeito! Eu peço as revistas para a minha ex-mulher e as levo na quarta, então.
- Combinado.
E estendeu a mão com um sorrisinho pérfido. Agora eu queria muito esmagar a sua cara, mas não fiz isso, nem apertei sua mão com força, isso poderia estragar o trabalho. Cumprimentei-o de forma amistosa.
- Aonde fica a Sociedade?
- Rua 13 de maio, esquina com a Mateus Leme.
- Ah, sei onde é. Fica ao lado dos teatros não é mesmo?
Às vezes, sinto-me um idiota querendo parecer um idiota.
- Com certeza.
odeio pessoas que falam “com certeza”
- Fica aos fundos do sebo. É só apertar o interfone e dizer que você vai na reunião da Sociedade. Se precisar, diga que você vai ao meu encontro. Deixarei avisado que você vai aparecer.
- Combinado, então, Harold. Quarta-feira às?
- 20:00 hs... em ponto.
E disse isso com sarcasmo, referindo-se ao meu atraso. Acho que esse cara já estava me observando desde a minha chegada. Eu estava no caminho certo.
Despedi-me de todos com acenos. Deixei a sacola que o Urbano tinha me dado ao lado do Maracolate e saí. Quando já estava do lado de fora ele veio correndo.
- Ei, Linhares, o seu livro!
- Que cabeça a minha, já ia me esquecendo.
- Eu vi que você ficou um tempo conversando com o Harold. Ele é meio estranho.
- Mais do que isso, Medeiros. Ele é o nosso suspeito. Deixei a sacola de propósito sobre a mesa e vi que ele ficou interessado em seu conteúdo, da mesma forma, que eu sei que você não me deixaria sair sem ela, por isso veio correndo atrás de mim. E, também, eu precisava te tirar de lá pra te dizer essas coisas.
- Hehe, muito bem, meu amigo.
Ele me deu um abraço de despedida e disse em meu ouvido.
- Conversamos pelo telefone do escritório amanhã de manhã.
Nos olhamos como quem concorda. Virei as costas e segui o meu caminho Comendador Araújo abaixo. Já estava de noite. O frio típico de Curitiba já caía sobre meu ombro. Ergui a gola do capote, finquei a cobertura na cabeça, acendi um cigarro e fui rua abaixo até o escritório, estava curioso para ver o que o Urbano tinha colocado em minha sacola.
Caminhei devagar e quarenta minutos depois estava devidamente instalado no escritório: café, cigarro e sofá. Puxei a sacola para perto. Um livro grosso de aparentemente 400 páginas. De capa em tons de azuis e laranjas. Um autor cubano, muito bom, por sinal. Já havia lido aquele livro, mas poderia lê-lo novamente sem problema algum. Abri o livro. Para minha surpresa: miolo falso! O Medeiros sabe com quem está lidando. No miolo falso do livro alguma coisa enrolada em papel tigre, com uma fitinha azul enrolando-o. Um pequeno pacote. Tirei a fitinha e dentro do pacote estava o mapa do tesouro: a primeira edição da Revista Lodo. Não me espantou o Urbano querer que eu ficasse de posse da revista, era uma questão de segurança. O que mais me surpreendeu foi ele ter armado toda essa novela para me entregar o pacote e, ao mesmo tempo, achar quem a procurava. Soltei um riso malicioso. Recostei a cabeça no sofá. Missão de hoje: ler a primeira edição da Revista Lodo. 

(continua)