quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Investigação no Boqueirão, segunda parte

Lopes e Linhares Detetives Associados
Ilustração de Fabiano Vianna

POLYANNA DIAS

Segunda-feira. Em Curitiba: chuva como de costume. No dia seguinte o Fúlvio ainda não chegou ao escritório. Batidas suaves na porta. Pelo vidro dava pra ver que era uma mulher. Abri.
            - Boa tarde.
            Uma morena muito bonita. Um metro e setenta e belos pares de peitos guardados por um sobretudo cor de vinho tinto. Ela estava molhada e eu guardei seu guarda-chuva. Saltos altos, bolsa de couro dessas marcas de mulher e bem maquiada para um dia de chuva. Mulheres... Ofereci-lhe uma cadeira.
            - Você deve ser o Detetive Linhares?
            Uma voz suave e penetrante como um belo oboé. Perguntou retirando o sobretudo e sentando-se.
            - Café?
            - Sem açúcar, por favor.
            Servi uma xícara de café e trouxe um cinzeiro para nós.
            - Sim. O que a trás aqui?
            (boa era a minha mãe que eu pedia um real e ela me dava dez)
            - Vou direto ao ponto. Você, como todo bom detetive, deve ter lido algo sobre os assassinatos no Boqueirão?
            Detesto ler jornais. Quando sei de alguma coisa é porque o Lufus me conta, ou porque algum canal de rádio da polícia noticiou alguma coisa. Mas não demonstrei ignorância.
            - Os dois policias que foram achados destroçados na beira do Rio Iguaçu, suponho.
            - Um deles era meu irmão...
            Humm... A coisa não está cheirando bem. Mas é trabalho.
            - ... e eu gostaria que você descobrisse quem fez isso com ele. Faça o preço que você quiser.
            - Como é seu nome?
            - Você pode me chamar de Poly, de Polyanna.
            Nome singelo, roupas elegantes, algumas jóias penduradas... Definitivamente ela não é do Boqueirão, mas reparou que eu a fitava.
            - Eu não sou do Boqueirão e coordeno duas das empresas de meu pai. Meu irmão era um sonhador e queria fazer justiça, limpar a cidade como vocês dizem. Nunca concordamos com isso, mas ele tinha um sonho... Enfim...
            Ela sabia que eu já estava a dez minutos lendo-a. Não me intimidei.
            - Me perdoe a indiscrição, mas você não tem, mesmo, cara de quem mora no Boqueirão.
            - Mas tenho um irmão que mora... morava, e quero que você solucione este problema para mim.
            BLAM! A porta se abriu como uma porteira em dia de rodeio. Lufus chegou.
            - Daê, Linhaça, tudo em cim... Opa. Desculpem-me a intromissão, mas não sabia que você estava acompanhado.
            - Lufus, cala a boca e senta. Essa é Dona Polyanna e ela quer que resolvamos um mistério no Boqueirão.
            - Pode me chamar apenas de Poly.
            Lufus pegou a mão da moça em sinal mais de galanteio do que de respeito e a beijou.
            - Muito prazer, Poly. Me chamam de Detetive Lopes, mas VOCÊ pode me chamar de Lufus.
            Era o que me faltava. Quatro da tarde, quase final de expediente, atrasado e bancando o fagueiro pra cima da mulher.
            - Ok, Lufinho. Puxe uma cadeira e vamos escutar a moça.
            O Fúlvio puxou uma cadeira e se ajeitou. Ela continuou a história.
            - Eu não sei nada além do que os jornais noticiaram. Espero que vocês possam saber e resolver este problema para a minha família. Papai está disposto a pagar o que for para dar um enterro digno para o meu irmão.
            - Bom, pelo que eu sei, a polícia não avançou muito nas investigações e os corpos foram para o IML.
            - Eles acharam os corpos na beira do Rio Iguaçu. Como não havia possibilidade de identificação, deixamos que o IML ficasse com os corpos para uma possível identificação dos assassinos.
            - Como ficou o corpo?
Perguntou o Lufus.
- Mas que pergunta idiota, Lufe.
Eu disse meio constrangido. O corpo tinha sido achado aos pedaços, com marcas que pareciam de mordidas. A polícia chegou a cogitar que algum bicho do zoológico havia fugido. Mas pelas fotos que eu vi por acaso, não há bichinhos desse porte no zoológico. Acharam até que algum estripador estava em ação, mas acho que não é o caso. Propus de irmos até lá.
- Com quem podemos falar da família, ou de alguém que viu o que aconteceu? Algum policial foi relatado para depor? Testemunhas?
- O que eu sei é que há um escritor de contos bizarros...
Eu já sabia de quem ela estava falando: Florestano Boaventura. Um velho conhecido da região. Alguns achavam que ele era louco, outros apenas que era um velho esquizofrênico que se escondia do mundo e escrevia coisas sobre lobisomens, vampiros, coisas bestiais e chupa-cabras. Pra mim, uma fonte segura do que estava acontecendo. Eu gostaria de conhecê-lo, afinal de contas, temos coisas em comum. Ele era escritor de uma revista de contos sujos. Eu tenho todas!
-... e que mora no meio da floresta, do Alto Uberaba. Talvez ele possa ajudar vocês. Ninguém tem coragem de chegar perto da casa dele. É muito escondida e dizem que tem um ar sombrio. Nenhum policial ousa chegar lá.
- Mas nós não somos policias, Dona. Somos detetives e isso nos faz bem diferentes desse tipos que estão por aí.
- Entendo, uma espécie de mercenários.
- Mercenários?
Indagou, Lufus, meio perplexo.
- Ô, Linhaça?! Mercenários?
- Sim. Do tipo que aprende como faz sendo policial por um tempo e depois tentando resolver as coisas do seu jeito. O que muitas vezes beira o bizarro.
Lufus levantou da cadeira puto.
- Olha aqui, Dona Polyanna, fique sabendo que somos nós os caras que resolvemos os casos mais difíceis da cidade, e que nem toda a força da polícia municipal reunida consegue fazê o trabalho que eu o meu parceiro fazemos. É ou não é, Linhaça?
- Se acalme Lufus, ela tem razão, por um lado.
- Razão? Qualé Linhaça? Bancando o vira-casaca só porque ela tem peitos e eu não?
- Haha! Não é só isso, Lufe.
(você também tem peitos)
- Você sabe que não temos regras e que gostamos de quebrar as que existem. Por um lado a Polyanna tem razão, mas não somos mercenários, como a senhorita nos chamou.
- Pode ser. Eu só estou aqui porque ninguém mais conseguiu resolver este caso e quero que vocês resolvam pra mim. Qual é o preço?
O Lufus já tinha até estufado o peito. Ele gosta de ouvir que só nós resolvemos as coisas por aqui.
- Bota um preço aí, Linhaça, e vâmo pegá esses safados que mexeram com a moça.
- Não mexeram comigo. Esquartejaram meu irmão, Detetive Lopes.
A calma com que ela falava do irmão era algo que me intrigava. Ninguém fala de um esquartejamento assim, como se acendesse e apagasse a luz do quarto.
- Tsca. Tô poco me lixando presses policias. Vamo lá pegá esses caras, Linhares. Bota o preço de uma vez e não esquece que tem alimentação, transporte, honorários, despesas extras e...
O Lopes saiu da sala falando e gesticulando, deve ter ido até a padoca tomar o café da tarde. Acalmei a moça e continuamos.
- Bom, o que ele quis dizer é que...
- Não me importa o que ele disse. O que eu quero é um enterro para o meu irmão e saber de uma vez quanto vamos desembolsar nessa empreitada.
Eu já estava começando a gostar da moça, mas ela queria botar um ponto final nesse papinho.
- Vamos começar com R$ 5.000,00. Todos os gastos terão as notas fiscais copiadas e enviadas para o seu escritório. Assinaremos um contrato quando o negócio já estiver pronto.
- Perfeito.
Ela meteu a mão em sua bolsa e sacou um maço de verdinhas que fez meu coração brilhar.
- Eu vou lhe dar R$ 8.000,00 adiantados. Se você precisar de mim estarei nesse telefone.
Sacou um porta cartões e me deu um:



Polyanna Dias Vicente
Diretora de Negócios
Dias Vicente Empreiteira LTDA



Dei o meu cartão. Bem mais humilde:


Detetive Linhares
Detetive



- Aguardo notícias.
E saiu.
- Muito bem. Eu ligo lhe passando o andamento...
E bateu a porta. Saiu como se não quisesse deixar sinais de sua passagem pelo escritório. Fui até a janela. Ela entrou em uma caminhonete preta pela porta do carona e arrancou. Eu fiquei ali mais uns minutos matutando.
- Porque tanto desinteresse no irmão? Espero que o Boaventura possa dar umas dicas do que está acontecendo.
Não conheço o Florestano, sou apenas um admirador da sua obra, mas terei muito prazer em conhecê-lo. O Lufus vai achar tudo isso uma merda, ele odeia essa história de gibis e monstros, acha coisa de débil-mental. Eu tenho uma queda por essas estórias e o Boaventura, de quebra, ainda vai me dar uns autógrafos, hehe.
Saí da janela e fui fazer uns contatos com uns amigos da polícia pra saber como foi o andamento, ou como andam as coisas pelo Boqueirão e adjacências. Pelo jeito a barra anda mais pesada do que eu imaginava naquele lugar. Assassinatos, tráfico de drogas, prostituição, isso é tudo muito normal praquele bairro. Acho que tem mais coisa por debaixo desse angu.
Liguei pra todos os caras que eu conhecia e peguei apenas nomes e referências de suspeitos, mas nada que pudesse dar uma pista mais concreta do que havia acontecido. O IML também não tinha informações boas, apenas que o que destroçou os dois policias era maior do que um leão, portanto, descartei a possibilidade de ser algum animal do zoológico. Mas deixaram que eu fosse ver o corpo. Marquei pra quarta-feira uma visitinha ao IML. Por enquanto, é esperar o Lufus voltar com o café e depois ir ver o tal do Florestano Boaventura. Vai ser legal.

(continua)

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Investigação no Boqueirão, primeira parte


BAR DO TONY

            Quinto dia sem trabalho. A chuva já transformou todas as pessoas da vizinhança em sapos. São dez e meia da manhã e eu estou entre a janela do escritório e o telefone: apenas observando. Algo me diz que hoje não será diferente de ont...
TOC TOC TOC
Ótimo! Batidas na porta. Trabalho, talvez. Apaguei o cigarro, ajeitei a gravata, dei uma mãozada no cabelo e fui até a porta. Empolgação reprimida. Vejo um rapaz de uns 15 anos, a julgar pela roupa, pelo boné, pela boca aberta enquanto masca um chiclete, pelo walkman no último volume e pela falta de pêlos no corpo.
- Encomenda para um tal de...
(ele faz uma pausa.... lê o nome no pacote... masca de boca aberta o chiclete fazendo um barulho ensurdecedor...)
- “Um tal” Detetive Linhares?
- É.
Que desaforo, pensei, já querendo dar umas bolachas no moleque.
- Aonde eu assino?
- Aí em baixo, tio.
Tio? Ok... Meu humor estava caindo pelas tabelas e eu estava culpando o garoto pelo meu estado vegetativo de não-ação. O rapaz me estendeu uma Bic quatro cores, típica caneta de moleques em plena puberdade. Escolhi a vermelha, pois me lembro de nunca poder usar a cor vermelha no colégio e, agora que eu sou grandinho, posso fazer o que eu quero. Assinei e peguei o pacote. Devia pesar umas duzentas gramas e não fazia barulho algum. Bati a porta, sentei na mesa e procurei pelo remetente: Fúlvio Lopes, de Guaíra.
Fúlvio e eu trabalhávamos juntos havia alguns anos. Rapaz de bons modos e índole agressiva, um ótimo parceiro para situações de risco. Bom de copo e gostava de quebrar uns bares por aí. Formávamos uma boa dupla. E agora ele estava investigando uns assassinatos numa cidade do interior do Paraná, na fronteira com o Paraguai. Umas coisas estranhas estavam acontecendo nessa cidadezinha e o prefeito nos contratou para dar cabo da situação. Como de praxe, Fúlvio foi sozinho dizendo que isso não requeria duas cabeças e que eu poderia ficar descansando em Curitiba. Não achei que ficaria uma semana sem trabalho. Mas a verdade é que eu já estava ficando puto.
Dentro do pacote alguns relatórios sobre o trabalho, que eu teria de transcrever para o computador e arquivar, e mais algumas fotos, também para o arquivo. Não me dei ao trabalho de ler, fui apenas passando os relatórios para o computador. Algumas coisas me chamaram a atenção, como alguns rapazes que andavam badernando um bar que o Lopes estava freqüentando em suas horas de folga e que ele de imediato suspeitou que pudessem levá-lo ao mentor dos crimes. Mas era só isso. Fúlvio não ligou, então espero que tudo esteja bem, não que ele vá ligar, ele sempre acha que pode resolver tudo sozinho.
Acendi mais um cigarro e fui até a janela. Afrouxei a gravata e fiquei olhando o formato dos pingos quando se chocavam contra o vidro da janela. Já estava ficando hipnotizado quando o telefone tocou.
- Lopes e Linhares Detetives Associados, Detetive Linhares.
- Eu gostaria de falar com a Elizete.
- Aqui não tem nenhuma Elizete, minha senhora.
- Mas esse foi o telefone que me deram pra falar com a Elizete.
- Então lhe deram o telefone errado, minha senhora.
- O senhor tem certeza que não mora nenhuma Elizete aí?
- Não, minha senhora! Aqui não tem ninguém com esse nome. Isso aqui é um escritório de detetives criminais que procuram assassinos, sabe como é? Gente que mata, rouba, estupra...
Enfim, eu já estava muito puto e, de quebra, uma senhora de uns 100 anos me liga pela manhã pra procurar uma outra senhora, provavelmente, da mesma idade. Falei umas besteiras para ela e desliguei o telefone. Já tinha dado pra bola passar esses cinco dias entre um café e outro, entre um cigarro e outro, e entre uma besteira e outra que pintava de vez em quando no telefone. Resolvi sair. O relógio já apontava 11:45 da manhã e fui dar uma volta na chuva pra esfriar a cabeça. Talvez, almoçar num restaurante que tem perto do escritório que serve um peixe fabuloso. É isso, peixe no almoço; uma bela taça de vinho; um cigarro depois e passar a tarde no escritório analisando os relatórios e as fotos que o Fúlvio tinha mandado pra mim. Combinei isso comigo mesmo, meti o capote e o chapéu, o coldre com a minha Jéssica, que é o nome carinhoso que dei pra minha Glock .45 de estimação, e saí.
Passei na banca de jornais para renovar o estoque de cigarros e segui em direção ao restaurante do Tony. Pela chuva que caía eu devia ter vestido botas sete léguas e pegado um barco pra chegar ao restaurante: seria mais rápido. As pessoas que usam guarda-chuvas, em Curitiba, insistem caminhar debaixo das marquises, fato esse que me deixa transtornado. Isso causa um congestionamento nos cantos das calçadas. É um empurra-empurra dos infernos, sem contar as bolinhas das pontas das hastes dos guarda-chuvas que batem na cabeça, e ninguém que usa guarda-chuvas se toca disso. Um inferno. Ah! E as porras dos petit-pavé soltos que espirram água suja na barra das calças? Outro inferno...
Cheguei ao restaurante. Cheio como de costume: bom para o Tony, pensei com certa malícia.
- Bom dia, Linhares. Como vai o senhor?
O garçom que ficava na entrada do restaurante recepcionando os clientes era uma pessoa de uma educação exemplar, não dava bons-dias ao acaso, gostava do que estava fazendo e eu respeito muito isso nas pessoas.
- Vou bem, obrigado. E você?
- Muito bem, obrigado por perguntar. Apesar dessa chuva que não pára nunca... Mas, enfim, em Curitiba o senhor sabe como é, não é mesmo? Quatro estações num só dia, hehehe.
- Claro. A minha mesa está vaga? Perguntei cortando o papo típico sobre o clima da cidade.
- Sim, por favor, disse indicando o caminho que eu já sabia de cor e salteado.
Deixei o capote e o chapéu em um dos cabides da entrada e fui até a mesa. Ficava num canto mais ao fundo do restaurante. Não gosto de me sentar em meio às pessoas. Almoço pra mim é sagrado. Comer é um ato de paciência, sentir a comida, os aromas e os sabores. Esse é um dos pouco prazeres que tenho na vida e prezo por ele: comer pouco e bem.
O cardápio foi servido logo em seguida. Dei umas folheadas apenas para conferir se tudo estava em seu devido lugar, mas acabei pedindo o que já havia imaginado pela manhã: peixe grelhado com ravióli. Recostei na cadeira, acendi um cigarro, dei umas belas baforadas e fiquei olhando as pessoas no bar. Gosto de analisar as pessoas. Seus gestos, seus olhares, a forma como conversam, como comem, como são. Fico imaginando se o quanto do que fazem é de fato o que querem fazer e quanto do que fazem é o quanto que querem que pareça que seja o que estão fazendo. Chamo de estética social. Me ajuda no meu trabalho conseguir entender melhor as fraquezas e os anseios de cada um.
Passo por todas as mesas e acabo me fixando em uma em especial: uma linda mulher sentada há algumas mesas de mim. Parece ter terminado o seu almoço. O prato está limpo. Gostaria de saber o que ela teria comido. Apaguei o cigarro e fiquei observando esta bela moça, enquanto esperava o meu peixinho com macarrão.
Ela delicadamente pegou o guardanapo repousado sobre suas torneadas e morenas coxas e levou-os até os lábios. Em dois suaves movimentos retirou os resíduos que lhe contornavam a boca. Vermelha, carnuda, sensual, um buraco negro que atrai para si os desejos mais libidinosos de todos que a cercam e observam atentamente àqueles lábios vulcânicos que derramam desejo e prazer.
            A essa altura já me esqueci do ravióli e do peixe grelhado que pedi há trinta minutos. Concentrei-me no gestual gatuno da moça na mesa ao lado. Está sozinha. Busco sinais de compromisso e, aparentemente, nada. Não sou o único. Várias pessoas entre rapazes e meninas a observam. Todos tentando de alguma forma chamar-lhe a atenção. Uma moça oriental de uns 25 anos fuma um cigarro atrás do outro em sinal de angústia; parece-me muito interessada no meu objeto de análise, mas, desconcentra-se, deixando movimentos nervosos e bruscos tomarem conta do seu corpo; cruza e descruza as pernas seguidamente; apaga os cigarros sem olhar para o cinzeiro deixando-os ainda acessos, o que gera uma fumaça de filtro queimado que, de certa forma, incomoda mais que a fumaça propriamente dita. Enfim, dá sinais nítidos de que não consegue adaptar-se à situação.
            Duas mesas para a direita um rapaz tenta de várias formas aparecer mais que sua vizinha nipônica: apóia os braços em posição blasé no encosto da cadeira, debruça-se exageradamente sobre a mesa, olha de canto, sinaliza ao garçom várias vezes, mas, em apenas uma das vezes formaliza um pedido claro: uma singela garrafinha de água. Estúpido! Estúpido e ingênuo!
            Em ambos os casos a respiração da moça morena não se alterou em nada. Ela não se dá pela existência desses seres que a cercam e tentam de alguma forma atrair-lhe. Muito pelo contrário, a cada movimento se afastam cada vez mais da bela menina. A distância aumenta a cada tentativa errada de aproximação.
            Eu não me mexo muito. Fico calado. Não gosto de aparecer mais do que o necessário para ser notado em uma fila de supermercado ou num balcão de farmácia. Mantenho-me sentado na mesma posição há 40 minutos apenas observando. Sinto-me confortável em ver como, de alguma maneira, os indivíduos estão sempre dispostos a conseguir um pouco de reciprocidade sentimental. Não olham porque gostam ou se sentem atraídos, ou não somente por isso. Olham, principalmente, para serem olhados. A maior recompensa para eles é a troca; retomar a dádiva do olhar, do gesto. Saber que o que foi dado, foi devolvido na mesma intensidade, ou, até, numa intensidade, de preferência, maior. Não é apenas a beleza da moça morena de pernas redondas e torneadas e lábios perfeitamente desenhados, é a chance de receber de volta o sentido do desejo de alguém, que para quem olha, é de uma beleza estonteante. Um troféu. Para o ego e para a alma. Eles devem dormir melhor quando são bem recebidos.
            Ela ainda não se move. Acompanho a direção do seu olhar e tenho a certeza de que ele termina em uma mesa logo ao lado da minha. Ajeito-me melhor na cadeira para visualizar o que há do meu lado e me espanto profundamente e no fim, quase entendo: um formoso casal. Dois jovens de aparentemente 26 anos, ele, e 23, ela. Ele, um provável economista recém pós-graduado em alguma área da política econômica moderna. Dá pra ver nos sapatos mocasim e na calça bege; camisa de gola pólo azul para dentro da calça e cabelo penteado a pente fino com gel fixador. Sem óculos. Para mim já é o suficiente para dizer se um indivíduo é de um determinado ramo ou não. Por exemplo, a oriental do outro do salão é nitidamente uma estudante de jornalismo, jovem, solteira, indecisa, que lê Veríssimo e acha que Dalton Trevisan é de fato um vampiro cult: que besteira! Ela está fumando cigarros lights, o que denota sua empatia por coisas menos ardidas, menos ácidas, e demonstra que de fato ela não é assim tão interessante quanto ela pensa que é: não é o cigarro que diz isso, sou eu! O nosso rapaz nervoso provavelmente é advogado, ou engenheiro mecânico. Está escrito na testa em letras garrafais! Lap top aberto em página de serviços sexuais com outra minimizada em site de relacionamentos. Por favor, meu rapaz! Para mim é óbvio e quase nunca erro. Malditos ossos deste ofício! E tudo somado a bendita leitura corporal...
            (cadê meu peixe...)
            Ela, de costas para mim, denota todas as suas qualidades apenas pelo vestido rosa, rendado, na altura dos joelhos e o sapatinho branco de verniz. Por sorte não era loira, pois, senão, meus preconceitos aflorariam como formiga no açúcar e, para mim, foi muito difícil guardá-los num canto obscuro da minha mente. Inúmeras sessões de concentração, condescendência, complacência, paciência, respeito, respiração, contar até dez, ignorar, não pensar, enfim, um mar de palavras de benesse para a convivência plena dos seres que habitam o 3º planeta. Algumas vezes larguei as reuniões de assistência mútua para não voar no pescoço de alguém e ser indiciado por “matança em série à base de lápis e canetas”. Em tempo recebi alta e nunca mais voltei. Porém, minha mente ainda se perturba com algumas coisas que consigo controlar usando as técnicas da Escolinha para Lelés da Tia Lalá. Tenho certeza que pensamentos maus não sairão pela minha boca, mas, eles existem e assombram. “Fiquem aí, pensamentos maus”! Penso com cinismo e desdém. Deixo-os adormecidos num canto qualquer e me concentro novamente na moça morena e no seu vislumbre ao casal de propaganda de margarina.
            O que faz essa mulher interessar-se tanto por este casal? A diferença, talvez. Não sei. Não concordo com isso. Seria muito óbvio. A moça sozinha veste sapatos de cetim pretos com laços pretos; tem os cabelos na altura dos ombros, repicados; um vestido preto de bolinhas brancas com decote em V e, diga-se de passagem, magnífico! Guarda belos seios intocáveis; a face carrega uma leve maquiagem que apenas aumenta a sua beleza e a profundidade de seus olhos negros. O vestido desenrola-se até os joelhos e, as pernas cruzadas, deixam um pouco à mostra as coxas outrora cobertas por um guardanapo. Por um momento fico bobo com tanta beleza. Porém, desvio o olhar para qualquer lugar, antes que seja flagrado por alguém como eu, que tem o passatempo voyeur de flagrar pessoas em suas intimidades.
            Mais alguns minutos e, com certo atraso, recebo meu pedido. Quase uma hora. Não fosse a minha pequena diversão já estaria no balcão do gerente proferindo palavras educadas e de bom gosto pelo péssimo serviço. Mentira! O Tony sempre faz isso. Os amigos são sempre os últimos porque entendem o movimento. Eu entendo e não dou a mínima. O que importa agora é o peixinho.
            Desvio a minha atenção para o prato e me delicio com meu fetiche gastronômico. Pelo menos uma vez por semana permito-me, com algumas ressalvas financeiras, entrar em restaurantes caros e aproveitar as maravilhas gustativas, principalmente, do chamado velho mundo. Vinhos, massas e grelhados estão entre meus fetiches favoritos e quando posso, dirijo-me a esses lugares classificados pela quantidade de estrelas que possuem. Não é sempre que a comida é boa. Às vezes, é só embuste. E aqui no Tony não tem erro, o peixe é sempre sensacional.
            (maravilha... alcaparras...)
            A moça revira algumas coisas em sua bolsa e retira um cigarro. Prontamente um dos garçons do Tony vem em seu socorro com uma pequena caixa de fósforos com a logo do restaurante estampada e que ela, de imediato, recusa descruzando as pernas e dirigindo-se ao casal da mesa ao lado. Muito interessante, penso. Largo meus talheres no prato. Limpo minha boca depressa. Tenho certeza que o jogo está apenas começando e não quero perder nenhum lance. A garota japonesa acende mais um cigarro; o rapaz pede mais uma garrafa d’água. Todos apreensivos com a escolha dela. Imagino que a pergunta que paira nas três mentes perturbadas seja a mesma: “O que quer essa mulher com este casal de almofadinhas”? Retirando o comentário maldoso para com as almofadas, todos os três param para ver a movimentação em torno da mesa.
            Ela lentamente se aproxima dos dois fitando o rapaz nos olhos, que não consegue disfarçar o nervosismo. A esposa de costas não vê o que está por vir, continua com os olhos fixos em seu prato na mesa. A cada passo o rapaz fica cada vez mais irrequieto; suas pernas começam a tremer; a face ruboriza-se; os talheres não obedecem às mãos. Movimentos frenéticos e caóticos que acabam denunciando sua indisposição momentânea. Gotas de suor começam a escorrer ao lado dos olhos; a pupila dilata-se; os dentes chocam-se e a esposa por um momento esquece o prato e dirige-se ao perturbado marido. Antes que possa abrir a boca e falar qualquer coisa sente um leve toque feminino no ombro esquerdo.
            Um calafrio percorre-lhe a espinha. Ela larga os talheres espantada. A face antes tranqüila transforma-se de súbito em uma fotografia de espanto orgásmico. Uma mulher até então pacata de sexo e vida, vê-se de frente a um admirável estado de prazer que jamais havia sentido em toda a sua vida. Um estado de espírito completamente novo que aos poucos vai tomando conta do corpo inteiro. Um calor infernal começa a percorrer seu corpo através dos pés; suas pernas amolecem; o ventre dilata e a encharca de tesão; os seios enrijecem e os mamilos denunciam uma supernova prestes a explodir. Os olhos enchem-se de lágrimas estupefatos de alegria.
            O marido, ainda chocado com a misteriosa mulher, responde negativamente quando questionado sobre o fogo – o que automática e instintivamente me levou a duas respostas e não apenas uma. Pura ironia. Seu espanto começa a cessar quando ele se vê diante de uma esposa alterada por algo que ele não consegue – e jamais conseguiria – enxergar, nem sequer entender.
            O homem pára. Congela. Apenas observa a relação que acabara de se estabelecer. Não reconhece a esposa. Não vê aquela que no pé do altar lhe disse com entusiasmo: “Sim”! E que lhe beijou a boca em sinal de compromisso eterno. Ele estava perdendo aquilo que achava que era seu; que achava que era para sempre.
            (Ora, meu rapaz, acorde! Não me diga que por sua cabeça entusiasta um dia lhe passou a idéia de que uma alma poderia ter dono? Por favor!)
            Me irrita pensar que o livre-arbítrio humano possa ser castrado. Que a única coisa que realmente nos pertence, nos seja tomada de estupro por outro indivíduo que mal sabe o que fazer da sua própria vida!
            Enfim... Dou uma respirada funda e me acalmo. Relax Detetive, relax...
            Lentamente a moça de rosa começa, ainda com medo, a virar o pescoço em direção a tal femme fatale. Nesse instante começo a buscar uma resposta. La femme apenas observa, segura de si e de seus desejos. Não entendo mais nada. Rapidamente limpo a boca e passo a mão na Jéssica. Os olhares das moças se tocam. Nesse momento é nítida a mudança que se operou na menina que está sentada diante de um marido pálido e ignóbil. Um calafrio me percorre a espinha. Sei que o que está para acontecer não é deste mundo e que vou ter de interferir rapidamente. Devagar fui ajeitando as pernas debaixo da mesa, sem perder de foco os olhos da moça morena que fita impiedosamente o pescoço da rapariga. Eu já tinha o abdômen tencionado para o bote quando, como se o tempo tivesse parado, a moça morena lentamente vira o pescoço em minha direção, abrindo um sorriso mortal e me congelando com seus olhos. Duas presas pontiagudas se pronunciam para fora da boca e ela, ainda rindo da minha imobilidade, desfere uma potente mordida contra o indefeso pescoço da moça de rosa. Na hora só conseguia pensar: “Malditas pernas que não me obedecem”, “maldito gatilho que não dispara”!
            Eu estava imóvel! Não conseguia nem piscar, e acabei vendo tudo de camarote. Sem poder fazer nada fiquei ali, atônito e aturdido, à espera do momento em que poderia esvaziar o carregador na cabeça daquele monstro, momento este que não chegaria nunca, tendo em vista, que depois do beijo fatal, ainda babando o sangue vermelho da moça, ela olhou no fundo dos meus olhos e deu um grito ensurdecedor fazendo tudo a minha volta escurecer e me derrubando da cadeira. Senti que meu corpo já se movia novamente, e quando levantei havia apenas o garçom com a conta olhando-me com cara de espanto. “Posso ajudar-lhe, senhor?” Gostaria muito de ter mandado o garçom pra casa do chapéu, mas acalmei-me e aceitei a ajuda, sentando-me à mesa e reparando que todos ainda estavam lá: o nerd do computador, a oriental, o casal de almofadinhas, os clientes alhures, garçons, enfim, tudo ainda estava em seu lugar, menos as minhas idéias, que bagunçadas davam um nó em minha cabeça. Recompus os pensamentos e abri o caderno de contas para acertar a minha parte e sumir dali. Já havia tido coisas demais para um dia, mas, como se ainda não fosse o suficiente, pra meu espanto a conta já estava paga, e anexo ao canhoto do bar, um bilhete: “KATRINA”.

(continua)