BAR DO TONY
Quinto
dia sem trabalho. A chuva já transformou todas as pessoas da vizinhança em sapos. São dez e meia
da manhã e eu estou entre a janela do escritório e o telefone: apenas
observando. Algo me diz que hoje não será diferente de ont...
TOC TOC TOC
Ótimo! Batidas
na porta. Trabalho, talvez. Apaguei o cigarro, ajeitei a gravata, dei uma
mãozada no cabelo e fui até a porta. Empolgação reprimida. Vejo um rapaz de uns
15 anos, a julgar pela roupa, pelo boné, pela boca aberta enquanto masca um
chiclete, pelo walkman no último volume e pela falta de pêlos no corpo.
- Encomenda
para um tal de...
(ele faz uma pausa.... lê o nome no
pacote... masca de boca aberta o chiclete fazendo um barulho ensurdecedor...)
- “Um tal”
Detetive Linhares?
- É.
Que desaforo,
pensei, já querendo dar umas bolachas no moleque.
- Aonde eu
assino?
- Aí em baixo,
tio.
Tio? Ok... Meu
humor estava caindo pelas tabelas e eu estava culpando o garoto pelo meu estado
vegetativo de não-ação. O rapaz me estendeu uma Bic quatro cores, típica caneta
de moleques em plena puberdade. Escolhi a vermelha, pois me lembro de nunca
poder usar a cor vermelha no colégio e, agora que eu sou grandinho, posso fazer
o que eu quero. Assinei e peguei o pacote. Devia pesar umas duzentas gramas e
não fazia barulho algum. Bati a porta, sentei na mesa e procurei pelo
remetente: Fúlvio Lopes, de Guaíra.
Fúlvio e eu
trabalhávamos juntos havia alguns anos. Rapaz de bons modos e índole agressiva,
um ótimo parceiro para situações de risco. Bom de copo e gostava de quebrar uns
bares por aí. Formávamos uma boa dupla. E agora ele estava investigando uns
assassinatos numa cidade do interior do Paraná, na fronteira com o Paraguai.
Umas coisas estranhas estavam acontecendo nessa cidadezinha e o prefeito nos
contratou para dar cabo da situação. Como de praxe, Fúlvio foi sozinho dizendo
que isso não requeria duas cabeças e que eu poderia ficar descansando em Curitiba. Não achei
que ficaria uma semana sem trabalho. Mas a verdade é que eu já estava ficando
puto.
Dentro do
pacote alguns relatórios sobre o trabalho, que eu teria de transcrever para o
computador e arquivar, e mais algumas fotos, também para o arquivo. Não me dei
ao trabalho de ler, fui apenas passando os relatórios para o computador. Algumas
coisas me chamaram a atenção, como alguns rapazes que andavam badernando um bar
que o Lopes estava freqüentando em suas horas de folga e que ele de imediato
suspeitou que pudessem levá-lo ao mentor dos crimes. Mas era só isso. Fúlvio
não ligou, então espero que tudo esteja bem, não que ele vá ligar, ele sempre
acha que pode resolver tudo sozinho.
Acendi mais um
cigarro e fui até a janela. Afrouxei a gravata e fiquei olhando o formato dos
pingos quando se chocavam contra o vidro da janela. Já estava ficando
hipnotizado quando o telefone tocou.
- Lopes e
Linhares Detetives Associados, Detetive Linhares.
- Eu gostaria
de falar com a Elizete.
- Aqui não tem
nenhuma Elizete, minha senhora.
- Mas esse foi
o telefone que me deram pra falar com a Elizete.
- Então lhe
deram o telefone errado, minha senhora.
- O senhor tem
certeza que não mora nenhuma Elizete aí?
- Não, minha
senhora! Aqui não tem ninguém com esse nome. Isso aqui é um escritório de
detetives criminais que procuram assassinos, sabe como é? Gente que mata,
rouba, estupra...
Enfim, eu já
estava muito puto e, de quebra, uma senhora de uns 100 anos me liga pela manhã
pra procurar uma outra senhora, provavelmente, da mesma idade. Falei umas
besteiras para ela e desliguei o telefone. Já tinha dado pra bola passar esses
cinco dias entre um café e outro, entre um cigarro e outro, e entre uma
besteira e outra que pintava de vez em quando no telefone. Resolvi sair. O
relógio já apontava 11:45 da manhã e fui dar uma volta na chuva pra esfriar a
cabeça. Talvez, almoçar num restaurante que tem perto do escritório que serve
um peixe fabuloso. É isso, peixe no almoço; uma bela taça de vinho; um cigarro
depois e passar a tarde no escritório analisando os relatórios e as fotos que o
Fúlvio tinha mandado pra mim. Combinei isso comigo mesmo, meti o capote e o
chapéu, o coldre com a minha Jéssica, que é o nome carinhoso que dei pra minha Glock
.45 de estimação, e saí.
Passei na
banca de jornais para renovar o estoque de cigarros e segui em direção ao
restaurante do Tony. Pela chuva que caía eu devia ter vestido botas sete léguas
e pegado um barco pra chegar ao restaurante: seria mais rápido. As pessoas que
usam guarda-chuvas, em Curitiba, insistem caminhar debaixo das marquises, fato
esse que me deixa transtornado. Isso causa um congestionamento nos cantos das
calçadas. É um empurra-empurra dos infernos, sem contar as bolinhas das pontas
das hastes dos guarda-chuvas que batem na cabeça, e ninguém que usa
guarda-chuvas se toca disso. Um inferno. Ah! E as porras dos petit-pavé soltos
que espirram água suja na barra das calças? Outro inferno...
Cheguei ao
restaurante. Cheio como de costume: bom para o Tony, pensei com certa malícia.
- Bom dia,
Linhares. Como vai o senhor?
O garçom que
ficava na entrada do restaurante recepcionando os clientes era uma pessoa de
uma educação exemplar, não dava bons-dias ao acaso, gostava do que estava
fazendo e eu respeito muito isso nas pessoas.
- Vou bem,
obrigado. E você?
- Muito bem,
obrigado por perguntar. Apesar dessa chuva que não pára nunca... Mas, enfim, em
Curitiba o senhor sabe como é, não é mesmo? Quatro estações num só dia, hehehe.
- Claro. A
minha mesa está vaga? Perguntei cortando o papo típico sobre o clima da cidade.
- Sim, por
favor, disse indicando o caminho que eu já sabia de cor e salteado.
Deixei o
capote e o chapéu em um dos cabides da entrada e fui até a mesa. Ficava num
canto mais ao fundo do restaurante. Não gosto de me sentar em meio às pessoas.
Almoço pra mim é sagrado. Comer é um ato de paciência, sentir a comida, os aromas
e os sabores. Esse é um dos pouco prazeres que tenho na vida e prezo por ele:
comer pouco e bem.
O cardápio foi
servido logo em seguida.
Dei umas folheadas apenas para conferir se tudo estava em seu
devido lugar, mas acabei pedindo o que já havia imaginado pela manhã: peixe
grelhado com ravióli. Recostei na cadeira, acendi um cigarro, dei umas belas
baforadas e fiquei olhando as pessoas no bar. Gosto de analisar as pessoas.
Seus gestos, seus olhares, a forma como conversam, como comem, como são. Fico
imaginando se o quanto do que fazem é de fato o que querem fazer e quanto do
que fazem é o quanto que querem que pareça que seja o que estão fazendo. Chamo
de estética social. Me ajuda no meu trabalho conseguir entender melhor as
fraquezas e os anseios de cada um.
Passo por
todas as mesas e acabo me fixando em uma em especial: uma linda mulher sentada há
algumas mesas de mim. Parece ter terminado o seu almoço. O prato está limpo.
Gostaria de saber o que ela teria comido. Apaguei o cigarro e fiquei observando
esta bela moça, enquanto esperava o meu peixinho com macarrão.
Ela
delicadamente pegou o guardanapo repousado sobre suas torneadas e morenas coxas
e levou-os até os lábios. Em dois suaves movimentos retirou os resíduos que lhe
contornavam a boca. Vermelha, carnuda, sensual, um buraco negro que atrai para
si os desejos mais libidinosos de todos que a cercam e observam atentamente
àqueles lábios vulcânicos que derramam desejo e prazer.
A
essa altura já me esqueci do ravióli e do peixe grelhado que pedi há trinta
minutos. Concentrei-me no gestual gatuno da moça na mesa ao lado. Está sozinha.
Busco sinais de compromisso e, aparentemente, nada. Não sou o único. Várias
pessoas entre rapazes e meninas a observam. Todos tentando de alguma forma
chamar-lhe a atenção. Uma moça oriental de uns 25 anos fuma um cigarro atrás do
outro em sinal de angústia; parece-me muito interessada no meu objeto de
análise, mas, desconcentra-se, deixando movimentos nervosos e bruscos tomarem
conta do seu corpo; cruza e descruza as pernas seguidamente; apaga os cigarros
sem olhar para o cinzeiro deixando-os ainda acessos, o que gera uma fumaça de
filtro queimado que, de certa forma, incomoda mais que a fumaça propriamente
dita. Enfim, dá sinais nítidos de que não consegue adaptar-se à situação.
Duas
mesas para a direita um rapaz tenta de várias formas aparecer mais que sua
vizinha nipônica: apóia os braços em posição blasé no encosto da cadeira, debruça-se exageradamente sobre a
mesa, olha de canto, sinaliza ao garçom várias vezes, mas, em apenas uma das
vezes formaliza um pedido claro: uma singela garrafinha de água. Estúpido!
Estúpido e ingênuo!
Em
ambos os casos a respiração da moça morena não se alterou em nada. Ela não se dá pela
existência desses seres que a cercam e tentam de alguma forma atrair-lhe. Muito
pelo contrário, a cada movimento se afastam cada vez mais da bela menina. A
distância aumenta a cada tentativa errada de aproximação.
Eu
não me mexo muito. Fico calado. Não gosto de aparecer mais do que o necessário
para ser notado em uma fila de supermercado ou num balcão de farmácia. Mantenho-me
sentado na mesma posição há 40 minutos apenas observando. Sinto-me confortável
em ver como, de alguma maneira, os indivíduos estão sempre dispostos a
conseguir um pouco de reciprocidade sentimental. Não olham porque gostam ou se
sentem atraídos, ou não somente por isso. Olham, principalmente, para serem
olhados. A maior recompensa para eles é a troca; retomar a dádiva do olhar, do
gesto. Saber que o que foi dado, foi devolvido na mesma intensidade, ou, até,
numa intensidade, de preferência, maior. Não é apenas a beleza da moça morena
de pernas redondas e torneadas e lábios perfeitamente desenhados, é a chance de
receber de volta o sentido do desejo de alguém, que para quem olha, é de uma
beleza estonteante. Um troféu. Para o ego e para a alma. Eles devem dormir melhor
quando são bem recebidos.
Ela
ainda não se move. Acompanho a direção do seu olhar e tenho a certeza de que
ele termina em uma mesa logo ao lado da minha. Ajeito-me melhor na cadeira para
visualizar o que há do meu lado e me espanto profundamente e no fim, quase
entendo: um formoso casal. Dois jovens de aparentemente 26 anos, ele, e 23,
ela. Ele, um provável economista recém pós-graduado em alguma área da política
econômica moderna. Dá pra ver nos sapatos mocasim e na calça bege; camisa de
gola pólo azul para dentro da calça e cabelo penteado a pente fino com gel
fixador. Sem óculos. Para mim já é o suficiente para dizer se um indivíduo é de
um determinado ramo ou não. Por exemplo, a oriental do outro do salão é
nitidamente uma estudante de jornalismo, jovem, solteira, indecisa, que lê Veríssimo e acha que
Dalton Trevisan é de fato um vampiro cult:
que besteira! Ela está fumando cigarros lights, o que denota sua empatia por coisas
menos ardidas, menos ácidas, e demonstra que de fato ela não é assim tão
interessante quanto ela pensa que é: não é o cigarro que diz isso, sou eu! O
nosso rapaz nervoso provavelmente é advogado, ou engenheiro mecânico. Está
escrito na testa em letras garrafais! Lap top aberto em página de serviços
sexuais com outra minimizada em site de relacionamentos. Por favor, meu rapaz!
Para mim é óbvio e quase nunca erro. Malditos ossos deste ofício! E tudo somado
a bendita leitura corporal...
(cadê meu peixe...)
Ela,
de costas para mim, denota todas as suas qualidades apenas pelo vestido rosa,
rendado, na altura dos joelhos e o sapatinho branco de verniz. Por sorte não
era loira, pois, senão, meus preconceitos aflorariam como formiga no açúcar e,
para mim, foi muito difícil guardá-los num canto obscuro da minha mente.
Inúmeras sessões de concentração, condescendência, complacência, paciência,
respeito, respiração, contar até dez, ignorar, não pensar, enfim, um mar de
palavras de benesse para a convivência plena dos seres que habitam o 3º
planeta. Algumas vezes larguei as reuniões de assistência mútua para não voar
no pescoço de alguém e ser indiciado por “matança em série à base de lápis e
canetas”. Em tempo recebi alta e nunca mais voltei. Porém, minha mente ainda se
perturba com algumas coisas que consigo controlar usando as técnicas da
Escolinha para Lelés da Tia Lalá. Tenho certeza que pensamentos maus não sairão
pela minha boca, mas, eles existem e assombram. “Fiquem aí, pensamentos maus”!
Penso com cinismo e desdém. Deixo-os adormecidos num canto qualquer e me
concentro novamente na moça morena e no seu vislumbre ao casal de propaganda de
margarina.
O
que faz essa mulher interessar-se tanto por este casal? A diferença, talvez.
Não sei. Não concordo com isso. Seria muito óbvio. A moça sozinha veste sapatos
de cetim pretos com laços pretos; tem os cabelos na altura dos ombros,
repicados; um vestido preto de bolinhas brancas com decote em V e, diga-se de
passagem, magnífico! Guarda belos seios intocáveis; a face carrega uma leve
maquiagem que apenas aumenta a sua beleza e a profundidade de seus olhos
negros. O vestido desenrola-se até os joelhos e, as pernas cruzadas, deixam um
pouco à mostra as coxas outrora cobertas por um guardanapo. Por um momento fico
bobo com tanta beleza. Porém, desvio o olhar para qualquer lugar, antes que
seja flagrado por alguém como eu, que tem o passatempo voyeur de flagrar pessoas em suas intimidades.
Mais
alguns minutos e, com certo atraso, recebo meu pedido. Quase uma hora. Não fosse
a minha pequena diversão já estaria no balcão do gerente proferindo palavras
educadas e de bom gosto pelo péssimo serviço. Mentira! O Tony sempre faz isso.
Os amigos são sempre os últimos porque entendem o movimento. Eu entendo e não
dou a mínima. O que importa agora é o peixinho.
Desvio
a minha atenção para o prato e me delicio com meu fetiche gastronômico. Pelo
menos uma vez por semana permito-me, com algumas ressalvas financeiras, entrar
em restaurantes caros e aproveitar as maravilhas gustativas, principalmente, do
chamado velho mundo. Vinhos, massas e grelhados estão entre meus fetiches
favoritos e quando posso, dirijo-me a esses lugares classificados pela
quantidade de estrelas que possuem. Não é sempre que a comida é boa. Às vezes,
é só embuste. E aqui no Tony não tem erro, o peixe é sempre sensacional.
(maravilha...
alcaparras...)
A
moça revira algumas coisas em sua bolsa e retira um cigarro. Prontamente um dos
garçons do Tony vem em seu socorro com uma pequena caixa de fósforos com a logo
do restaurante estampada e que ela, de imediato, recusa descruzando as pernas e
dirigindo-se ao casal da mesa ao lado. Muito interessante, penso. Largo meus
talheres no prato. Limpo minha boca depressa. Tenho certeza que o jogo está
apenas começando e não quero perder nenhum lance. A garota japonesa acende mais
um cigarro; o rapaz pede mais uma garrafa d’água. Todos apreensivos com a
escolha dela. Imagino que a pergunta que paira nas três mentes perturbadas seja
a mesma: “O que quer essa mulher com este casal de almofadinhas”? Retirando o
comentário maldoso para com as almofadas, todos os três param para ver a
movimentação em torno da mesa.
Ela
lentamente se aproxima dos dois fitando o rapaz nos olhos, que não consegue
disfarçar o nervosismo. A esposa de costas não vê o que está por vir, continua
com os olhos fixos em seu prato na mesa. A cada passo o rapaz fica cada vez
mais irrequieto; suas pernas começam a tremer; a face ruboriza-se; os talheres
não obedecem às mãos. Movimentos frenéticos e caóticos que acabam denunciando
sua indisposição momentânea. Gotas de suor começam a escorrer ao lado dos
olhos; a pupila dilata-se; os dentes chocam-se e a esposa por um momento
esquece o prato e dirige-se ao perturbado marido. Antes que possa abrir a boca
e falar qualquer coisa sente um leve toque feminino no ombro esquerdo.
Um
calafrio percorre-lhe a espinha. Ela larga os talheres espantada. A face antes
tranqüila transforma-se de súbito em uma fotografia de espanto orgásmico. Uma
mulher até então pacata de sexo e vida, vê-se de frente a um admirável estado
de prazer que jamais havia sentido em toda a sua vida. Um estado de espírito completamente
novo que aos poucos vai tomando conta do corpo inteiro. Um calor infernal
começa a percorrer seu corpo através dos pés; suas pernas amolecem; o ventre
dilata e a encharca de tesão; os seios enrijecem e os mamilos denunciam uma
supernova prestes a explodir. Os olhos enchem-se de lágrimas estupefatos de
alegria.
O
marido, ainda chocado com a misteriosa mulher, responde negativamente quando
questionado sobre o fogo – o que automática e instintivamente me levou a duas
respostas e não apenas uma. Pura ironia. Seu espanto começa a cessar quando ele
se vê diante de uma esposa alterada por algo que ele não consegue – e jamais
conseguiria – enxergar, nem sequer entender.
O
homem pára. Congela. Apenas observa a relação que acabara de se estabelecer.
Não reconhece a esposa. Não vê aquela que no pé do altar lhe disse com
entusiasmo: “Sim”! E que lhe beijou a boca em sinal de compromisso eterno. Ele
estava perdendo aquilo que achava que era seu; que achava que era para sempre.
(Ora, meu rapaz, acorde! Não me diga que por
sua cabeça entusiasta um dia lhe passou a idéia de que uma alma poderia ter
dono? Por favor!)
Me
irrita pensar que o livre-arbítrio humano possa ser castrado. Que a única coisa
que realmente nos pertence, nos seja tomada de estupro por outro indivíduo que
mal sabe o que fazer da sua própria vida!
Enfim...
Dou uma respirada funda e me acalmo. Relax Detetive, relax...
Lentamente
a moça de rosa começa, ainda com medo, a virar o pescoço em direção a tal femme
fatale. Nesse instante começo a buscar uma resposta. La femme apenas observa,
segura de si e de seus desejos. Não entendo mais nada. Rapidamente limpo a boca
e passo a mão na Jéssica. Os olhares das moças se tocam. Nesse momento é nítida
a mudança que se operou na menina que está sentada diante de um marido pálido e
ignóbil. Um calafrio me percorre a espinha. Sei que o que está para acontecer
não é deste mundo e que vou ter de interferir rapidamente. Devagar fui
ajeitando as pernas debaixo da mesa, sem perder de foco os olhos da moça morena
que fita impiedosamente o pescoço da rapariga. Eu já tinha o abdômen tencionado
para o bote quando, como se o tempo tivesse parado, a moça morena lentamente
vira o pescoço em minha direção, abrindo um sorriso mortal e me congelando com
seus olhos. Duas presas pontiagudas se pronunciam para fora da boca e ela,
ainda rindo da minha imobilidade, desfere uma potente mordida contra o indefeso
pescoço da moça de rosa. Na hora só conseguia pensar: “Malditas pernas que não
me obedecem”, “maldito gatilho que não dispara”!
Eu
estava imóvel! Não conseguia nem piscar, e acabei vendo tudo de camarote. Sem
poder fazer nada fiquei ali, atônito e aturdido, à espera do momento em que
poderia esvaziar o carregador na cabeça daquele monstro, momento este que não
chegaria nunca, tendo em vista, que depois do beijo fatal, ainda babando o
sangue vermelho da moça, ela olhou no fundo dos meus olhos e deu um grito
ensurdecedor fazendo tudo a minha volta escurecer e me derrubando da cadeira. Senti
que meu corpo já se movia novamente, e quando levantei havia apenas o garçom
com a conta olhando-me com cara de espanto. “Posso ajudar-lhe, senhor?”
Gostaria muito de ter mandado o garçom pra casa do chapéu, mas acalmei-me e
aceitei a ajuda, sentando-me à mesa e reparando que todos ainda estavam lá: o
nerd do computador, a oriental, o casal de almofadinhas, os clientes alhures,
garçons, enfim, tudo ainda estava em seu lugar, menos as minhas idéias, que
bagunçadas davam um nó em minha cabeça. Recompus os pensamentos e abri o
caderno de contas para acertar a minha parte e sumir dali. Já havia tido coisas
demais para um dia, mas, como se ainda não fosse o suficiente, pra meu espanto
a conta já estava paga, e anexo ao canhoto do bar, um bilhete: “KATRINA”.
(continua)