segunda-feira, 28 de maio de 2012

Sobre Cafés - parte 1


Capas Antigas da Revista LODO


O telefone tocou pela manhã: Urbano Medeiros.
- Lopes e Linhares Detetives Associados.
- Bom dia, Linhares. Aqui quem fala é o seu amigo Urbano Medeiros.
Grande amigo, diga-se de passagem. Um dos maiores e mais honestos jornalistas que já conheci em minha vida. Uma pessoa de índole intocável e um ser humano fabuloso, pois, se tem uma coisa que me tira do sério são esses jornalistas de porta de celebridade, esses merdinhas que passam a semana pensando em algum tipo de pergunta idiota pra se fazer pruma pessoa idiota, e publicar as maiores ignomínias e mentiras sobre nós, patéticos seres humanos, donos dos fatos cotidianescos que enchem páginas de jornais. Posso afirmar, sem nenhum remorso, devido à proporção de pessoas boas nesses ramos ser baixíssima, que uma das minhas maiores decepções com Deus é a d’Ele ter enchido o mundo com advogados, jornalistas e publicitários, nessa ordem, respectivamente. E isso não é Estética da Gracinha. Talvez, o Diabo goste. Pode ser.
- Grande Urbano, o que me conta? Precisando de uns servicinhos extras?
- Olha, por incrível que pareça, estou ligando pra te convidar prum fato incomum.
- Um enterro de anão, talvez?
estética da gracinha            
- Não.
Disse rindo com o canto da boca, como se tivesse achado o meu comentário esdrúxulo.
– Na verdade, marquei uma reunião com alguns amigos no Lucca Cafés do Soho. Dei uma limpa nos armários lá de casa e gostaria de devolver algumas coisinhas que fui emprestando pelo decorrer da minha vida.
- Genial. Mas, você tem alguma coisa que é minha? Eu mesmo já não tenho quase nada.
- Pois é, Linhares, eu não tenho nada seu, mas eu te liguei pra ter você na mesa com os amigos de antigamente, rever as pessoas do passado, contar umas estórias engraçadas, enfim, pra sairmos um pouco da penumbra da vida real. Porra, somos amigos!
- Claro, Urbs. Estou lisonjeado com o convite e aparecerei sem dúvidas. Quando é?
- Domingo, no Lucca do Soho, às 16 hs.
- Fechado, meu querido.
- Grande abraço.
- Abraço.
E desligamos.
Domingo, às 17 hs, cheguei no tal café do Soho. Um dia de sol dos infernos. O calor estava insuportável. Curitiba tem dessas, num dia temporais tsunâmicos e todos viramos sapos, e no outro um sol de amolecer asfalto e viramos pasta de amendoim. A preguiça se torna lugar comum e todos rumam para os cafés e parques da cidade para fazer nada e beber e paquerar e, como eu, encontrar velhos amigos.
Fui a pé. Passei no escritório para ajeitar umas coisas da semana que vem e rumei para o Soho. O escritório não fica muito longe desse bairro e achei melhor caminhar e dar uma desenferrujada. É um bairro bonito, com uma grande quantidade de árvores frondosas que formam belos corredores verdes nas ruas. De ruas estreitas e antigas, foi o bairro das célebres famílias da cidade, de políticos, empresários, gente importante. Estou falando dos milionários, dos caras que mandam no negócio. Esse bairro foi construído com estes alicerces: o de ser o “nosso lar”. Tenho certeza que sim.
Trinta minutos de caminhada em linha reta pela Comendador Araújo – que é uma das ruas mais charmosas da cidade, com suas casas antigas e seus passeios de petit-pavé formando grandes pinheiros no chão e seus postes de luzes amarelas, que de dia ficam desligados, mas à noite dão um charme incomparável ao lugar, e quem passa por ali depois das oito da noite sem dúvida nenhuma sente uma certa nostalgia ou até mesmo pode se confundir de estar andando em alguma boulevard francesa – e eu viro à direita e avisto o café que o Medeiros me indicou.
O tal café era bacana. Um lugarzinho escondido entre alguns pés de café e cheio de pessoas agradáveis; uma varanda externa com várias mesas de madeira, e muitas pessoas normais papeando. Olhando assim, já começo a me sentir um peixe fora d’água. Não sou muito dado a essas aglomerações. Muito blá blá blá e pouca conversa, se é que você me entende, mas entrei e comecei a procurar pelos amigos de outras datas. O café é muito maior por dentro do que parece por fora: dois andares e três mezzaninos que o recortam por dentro, com um vão central e uma escada que conecta todos os andares. Logo na entrada o bar à direita e algumas mesas à esquerda. Um mezzanino para a direita e para a esquerda e para baixo um andar abaixo da terra
muito interessante
com máquina de torrar café e alguns expositores com cafés de diversos lugares do mundo
muito interessante, mesmo!
que depois eu ia me ocupar porque tenho as veias cheias desse troço, mas que por enquanto não prendeu minha atenção, pois estava à procura de Urbano.
bom esse nome parece coisa de cinema 
Como não conhecia ninguém fui direto ao óbvio: comecei por esse piso de baixo procurando pelos convivas. Bingo! Lá estavam alguns dos convidados que diferente de mim não se atrasaram. Pessoas ligadas ao cinema, a literatura, ao teatro, e otras cositas más. Gentes de vários ramos da arte, digamos assim. Pessoal importante, mas do qual eu me desvencilhei havia alguns anos quando e resolvi ser eu mesmo, ao invés de correr atrás de algo com a qual não me identificava: coisas de academia.
Urbano Medeiros estava num canto de papo com o Bernard que hoje tem dois restaurantes maravilhosos na cidade. Estavam fechando a assessoria de imprensa para o ano corrente e o seguinte quando eu cheguei acabando com o papo.
- Grande Bernie! Quanto tempo!
- Linhares, Linhares. Parece que o tempo passa mais rápido pra você. Você está com uma cara de...
O Bernie falando desse jeito me fez refletir sobre o porque eu simplesmente parei de conversar com determinadas pessoas nessa vida
completo idiota                                 
- Mais velho?
Eu disse já interrompendo o papinho.
- Não é bem isso...
- Mas é isso, Bernie. Trabalhar com a escória dá nessas coisas.
Cortei a conversinha de domingo e fui dar atenção ao Urbano.
- Obrigado pelo convite, Medeiros. Mas como você pode notar algumas pessoas não estão aqui para serem amigas.
Já saindo de fino. Ele riu maliciosamente, bom jornalista que é. Já havia sacado tudo.
- Esquece o Bernard. Eu te chamei aqui porque quero que você me ajude com uma pessoa. Outra coisa, aqui está aquilo que você me emprestou há uns dez anos, lembra? Muito obrigado.
Achei estranho, pois tenho certeza de que não há nada meu com o Urbano. Mas pelo tom da conversa sei que ele está armando alguma. Ele me estendeu um pacote de papel um pouco pesado. Aceitei de bom grado, bom fingidor que sou. Dei um abraço nele. Ele me convidou para um café.
- Sim. Vamos pegar um café no andar de cima.
Claro que não poderíamos falar em público. A coisa devia ser mais importante do que simples devoluções de antigamente. Eu já desconfiava de alguma coisa, o Urbano jamais me convidaria para vir aqui encontrar esse bando de idiotas. Fiquei de olhos abertos com as pessoas e já saquei qual é a do lugar e a do encontro, mas deixei o Medeiros falar. Encostamos no balcão e rapidamente nos serviram dois cafés puros, coados, e da Guatemala. Sensacional! O perfume do café era algo de sublime. Jamais tinha sentido algo assim com nossos cafés brasileiros. Um aroma cítrico de flor de laranjeira e uma suavidade de flor no sabor que me fizeram entender porque eu voltaria a essa casa de cafés pelo resto da minha vida, ao menos uma vez por dia.
- O negócio é o seguinte. Eu suspeito de que alguém aqui está a fim de me passar a perna, por isso armei este esquema de devolução de coisas e te chamei.
- Direto ao ponto, Medeiros.
- Eu tenho algo raro em meu poder e que um dos convidados quer, mas não sei quem é.
- E eu tenho de identificá-lo em meio a todos os convidados e quebrá-lo de pau e depois prendê-lo, ou vice-versa.
- Eu não sei se a pessoa é homem ou mulher. Portanto, cautela.
- E do que se trata?
- Do primeiro exemplar da Revista Lodo, que foi editado há uns 30 anos atrás e ninguém mais a viu. O exemplar que está comigo era de um amigo meu, o Vianinha, você deve lembrar dele, da época de faculdade. Eu revirei os sebos, a casa dos familiares, liguei pra todo mundo que conhecia o Vianinha e ninguém soube dar notícias nem donde ele está, nem do fim das revistas, porque todas sumiram.
- E essa tua revista? Como você a conseguiu?
- Comprei num leilão pela internet. Num site de compra e venda de livros, uma espécie de sebo eletrônico, de um cara do Rio de Janeiro que disse que o pai tinha o exemplar porque conheceu o Vianinha na época do lançamento da revista, mas daí o pai do cara faleceu e o moleque acabou vendendo tudo o que o pai tinha e eu dei a sorte de conseguir o exemplar nesse sebo.
- Ok.
- Mas, de uma certa forma, ninguém sabe se essa revista está aqui com você ou não?
- Exato. Portanto, quero que você mantenha os olhos abertos pra qualquer atitude suspeita.
- Esta aqui é uma atitude suspeita.
- Por isso pedi para que...
Enquanto ele falava, um dos meninos do bar estava tirando do congelador uma outra raridade, o Maracolate. Uma torta congelada de maracujá com chocolate que a mãe do irmão do Urbano, Dona Gleuza, tinha inventado há um tempo atrás, quando ela ainda tinha uma pousada na praia. Muitas pessoas iam de Curitiba para a praia só pra comer a tal da torta. Inclusive, a pousada fechou alguns anos depois e todos voltaram pra Curitiba e abriram um negócio de tortas. O Medeiros foi pra faculdade, que foi paga com o lucro das tortas, mas, até onde eu sei, o negócio ainda está de pé e de vento em popa. Além da torta trouxeram junto um monte de pratos e talheres, os quais ele indicou que eu o ajudasse.
- ...os meninos me trouxessem a torta agora. E você vai me ajudar com os talheres.
Muito astuto. Tirou a atenção de todos com essa desculpinha esfarrapada de ir buscar uma torta e me arrastou com ele. Ele já contava com meu atraso, o que deu tempo de entreter os convivas por um tempo até ter a oportunidade de ir buscar a torta e, talvez, até cantarmos um parabéns pra você. Mas, de qualquer forma, fiquei atento aos sinais que as pessoas estavam me dando. A minha própria presença já é algo que chama a atenção e todos ali sabiam quem eu era e o que eu fazia. Voltamos para a reunião. Mas, antes de descermos novamente, tomei o meu Guatemala. Maravilhoso!
Colocamos a torta sobre a mesa e a mulher do Urbano, Mary Anne, grande artista plástica e designer da cidade, com trabalhos expostos em vários países. Uma mulher de um metro e sessenta, morena, de cabelos escuros e olhos negros, profundos e marcantes. Muito inteligente e experta se prontificou a nos ajudar a servir a todos, me liberando, assim, preu usar meus dotes vouyeurs.
Passamos mais algumas horas no recinto nos acabando com cafés de diversos países e alguns brasileiros, um mais maravilhoso que o outro, e com o Maracolate, que foi o assunto da tarde. Todos querendo roubar a receita que o Rafa de bate-pronto já colocava: “Sei apenas que tem maracujá e chocolate”. É por aí Rafa, nada de dar segredos de mão beijada pra esses safados. Porque pra mim, agora, todos eram uns safados até que se provasse o contrário.
O fato é que houve poucos sinais de interesse ou algo do gênero que envolvesse a tal revista. Captei poucas coisas nas pessoas, mas algo me chamou a atenção: um rapaz de uns 35 anos, cabelos claros, olhos castanhos, um metro e noventa, levemente gordo (uma típica pança de cerveja, quero dizer), que a todo momento conversava com as pessoas sobre histórias em quadrinhos. Não que isso seja motivo para ele ser o larápio, mas o seu interesse saudosista em falar sempre sobre as revistas do passado começou a me chamar a atenção. Fui até ele.
- Você que é Harold? O cineasta que dirigiu “Até que a vida nos separe”?
- Isso mesmo.
Num tom pedante, típico dos idiotas que se acham os tais porque já fizeram alguma merda no cinema.
- Muito prazer, Linhares.
- Humm...
Esse “humm...” me fez pensar na cena da minha mão quebrando o seu maxilar em dois lugares, e do seu corpo caindo sobre o Maracolate depois que eu o chutei sem piedade nas costelas. Mas eu pensei no Maracolate e desisti.
- Vi você comentando sobre os gibis...
- Graphic Novels.
A interrupção conceitual sobre uma porcaria de gibi ser um gibi, ou um HQ ou uma Graphic sei lá o quê, me fez repensar a cena do Maracolate sendo destroçado por um corpo que cai. Contive-me.
- Isso mesmo. Eu tenho uns exemplares que eu gostaria de doar ou vender, ou qualquer coisa que os valham, porque meu filho...
Essa de filho foi ótima. Já comecei a fazer a história do meu filho na cabeça, caso precisasse usá-la: 16 anos, mora com a mãe em Paranavaí, gosta de futebol, RPG, quadrinhos, é fã de heavy metal, não vai à praia, tem uma namorada que é escritora, vai cursar publicidade – pelo menos é o que ele pensa que vai fazer – e tem, o que é mais importante, uma mãe chamada Denise. Pra começar seria isso. Depois eu penso melhor como é essa minha família.
- ...tá indo estudar publicidade na Alemanha e resolveu dar cabo em algumas coisas dele. E eu me lembro dele ter comentado que tinha umas velharias guardadas. A Denise, minha ex-mulher, até comentou comigo se eu não conhecia ninguém que gostaria de dar uma olhada nesses troços.
O Harold até começou a gostar um pouco mais de mim depois da história dos gibis.
- Linhares, você disse?
- Isso mesmo.
- Bom, Linhares, eu sou um profícuo colecionador...
um aproveitador barato               
- ...de HQ’s e Graphic Novels...
um nerd e um chato
- ...e tenho uma coleção vastíssima com mais de duas mil revistas nacionais e internacionais...
começou a sessão “eu pagando pau pra mim mesmo”
- ...e sou o presidente da SGNB...
uma sigla muito importante
- ...Sociedade Graphic Novels Brasileira..
um agrupamento de caras babacas que conseguem passar um dia inteiro discutindo o raio do porque o cara fez um traço com a mão esquerda e não com a direita mesmo sendo destro
- ...e acredito que as revistas do seu menino possam nos interessar e muito.
- Certo. E você quer que eu peça pra Denise as enviar pra vocês? Você quer dar uma olhada nas revistas?
- Claro, meu amigo.
Amigo?! Esse cara já estava passando do ponto. Eu realmente gostaria de dar um sopapo de mão aberta na sua cara.
- Podemos marcar uma tarde no nosso escritório e vermos as tais revistas.
- Ok. E quando pode ser?
Eu fiz essa pergunta já querendo me desvencilhar desse cretino. Eu já estava desconfiando dele, mas gostaria de dar um tempo na conversa para analisar o seu gestual a partir desse momento. Acho que ele ia começar a dar sinais de sua própria denúncia.
- Que tal na quarta-feira? Teremos a reunião mensal da SGNB, e talvez você possa nos levar as revistas para análise.
- Perfeito! Eu peço as revistas para a minha ex-mulher e as levo na quarta, então.
- Combinado.
E estendeu a mão com um sorrisinho pérfido. Agora eu queria muito esmagar a sua cara, mas não fiz isso, nem apertei sua mão com força, isso poderia estragar o trabalho. Cumprimentei-o de forma amistosa.
- Aonde fica a Sociedade?
- Rua 13 de maio, esquina com a Mateus Leme.
- Ah, sei onde é. Fica ao lado dos teatros não é mesmo?
Às vezes, sinto-me um idiota querendo parecer um idiota.
- Com certeza.
odeio pessoas que falam “com certeza”
- Fica aos fundos do sebo. É só apertar o interfone e dizer que você vai na reunião da Sociedade. Se precisar, diga que você vai ao meu encontro. Deixarei avisado que você vai aparecer.
- Combinado, então, Harold. Quarta-feira às?
- 20:00 hs... em ponto.
E disse isso com sarcasmo, referindo-se ao meu atraso. Acho que esse cara já estava me observando desde a minha chegada. Eu estava no caminho certo.
Despedi-me de todos com acenos. Deixei a sacola que o Urbano tinha me dado ao lado do Maracolate e saí. Quando já estava do lado de fora ele veio correndo.
- Ei, Linhares, o seu livro!
- Que cabeça a minha, já ia me esquecendo.
- Eu vi que você ficou um tempo conversando com o Harold. Ele é meio estranho.
- Mais do que isso, Medeiros. Ele é o nosso suspeito. Deixei a sacola de propósito sobre a mesa e vi que ele ficou interessado em seu conteúdo, da mesma forma, que eu sei que você não me deixaria sair sem ela, por isso veio correndo atrás de mim. E, também, eu precisava te tirar de lá pra te dizer essas coisas.
- Hehe, muito bem, meu amigo.
Ele me deu um abraço de despedida e disse em meu ouvido.
- Conversamos pelo telefone do escritório amanhã de manhã.
Nos olhamos como quem concorda. Virei as costas e segui o meu caminho Comendador Araújo abaixo. Já estava de noite. O frio típico de Curitiba já caía sobre meu ombro. Ergui a gola do capote, finquei a cobertura na cabeça, acendi um cigarro e fui rua abaixo até o escritório, estava curioso para ver o que o Urbano tinha colocado em minha sacola.
Caminhei devagar e quarenta minutos depois estava devidamente instalado no escritório: café, cigarro e sofá. Puxei a sacola para perto. Um livro grosso de aparentemente 400 páginas. De capa em tons de azuis e laranjas. Um autor cubano, muito bom, por sinal. Já havia lido aquele livro, mas poderia lê-lo novamente sem problema algum. Abri o livro. Para minha surpresa: miolo falso! O Medeiros sabe com quem está lidando. No miolo falso do livro alguma coisa enrolada em papel tigre, com uma fitinha azul enrolando-o. Um pequeno pacote. Tirei a fitinha e dentro do pacote estava o mapa do tesouro: a primeira edição da Revista Lodo. Não me espantou o Urbano querer que eu ficasse de posse da revista, era uma questão de segurança. O que mais me surpreendeu foi ele ter armado toda essa novela para me entregar o pacote e, ao mesmo tempo, achar quem a procurava. Soltei um riso malicioso. Recostei a cabeça no sofá. Missão de hoje: ler a primeira edição da Revista Lodo. 

(continua)

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Comedor de Haxixe - parte 1



Havia um recado na porta do escritório quando cheguei. Um número de telefone. Liguei. Atendeu uma voz velha e feminina.
- Pois não.
- Meu nome é Detetive Linhares. Eu cheguei em meu escri...
- Sim. Fui eu quem deixou este número. Eu quero que o senhor apague uma pessoa.
Assim. Direta. Gostei.
- Preciso de alguns dados.
- Seu nome é Orlando Barreto. Tem 68 anos. Um metro e oitenta, noventa e seis quilos. É moreno e tem os olhos castanhos claros. Sai todos os dias de casa às nove da manhã para caminhar e retorna ao meio-dia para almoçar. Vai todas as noites em um bar na esquina da Saldanha Marinho com a Visconde do Rio Branco.
- Ok, ok, minha senhora. Vá com calma.
- Eu tenho R$ 15.000,00.
A voz da velha aos poucos estava se alterando. Quanto mais ela falava deste senhor, mais ela ia encorpando e tornando-se raivosa. Acho que eram casados e a querela era pessoal. E envolvia mais do que amor.
- Escuta, dona! A senhora quer que eu ‘pegue’ alguém, ou ‘apague’ alguém. Eu não sou assassino de aluguel!
- Ele é meu marido e...
- Eu vou lhe dar o telefone de uns caras que fazem servicinhos desse gênero e a senhora se acerta com eles.
- Ele mata pessoas.
- Que?
- É isso, detetive. Ele é um assassino.
Por uma certa ótica a história começou a ter um tom mais dramático. Melodramático.
- E a senhora já procurou a polícia.
- Ele é policial aposentado. Ninguém pode fazer nada. Ele era capitão do 8º Distrito.
O Leão. Conheço o cara. Uma lenda entre os policiais. Nunca perdeu um caso. Tem uma ficha ilibada, mas sempre ouvi falar que era um cara sujo. Se aposentou da polícia a um tempo. Uns dez anos, mais ou menos. Tinha fama de impiedoso. A marginália se borrava toda só de ouvir o nome do cara. Por um lado eu gostava dele, mas entendo o que a família deve pensar.E não estou nem aí.
- Ele sai todas as noites e volta no meio da madrugada quando eu já estou deitada. Faz um barulhão na garagem, toma um banho e vem deitar. Nunca reclamei desses hábitos, mas comecei a achar estranho e fui ver o que ele guardava na garagem. Eu tenho medo do que ele possa estar fazendo e queria que o senhor investigasse isso.
- O que a senhora encontrou na garagem?
- O senhor pode passar aqui em casa para verificar?
- Ok, madame. R$ 15.000,00 é uma grana boa. Eu vou ver o que está acontecendo.
Desligou.
- Pegar o Leão vai ser interessante. Assassino... Acho que esse cara tem um algo a mais. Vai ser legal. Hehe.
Ela me deu o endereço. Marcamos um horário no meio da noite. Fui até a biblioteca ver os jornais de dias anteriores pra ver se havia assassinatos estranhos ocorrendo pela cidade. Algo que me colocasse na cola do Leão.
Li tudo que havia dos últimos três meses e separei alguns crimes que me chamaram a atenção. Pelo que sempre ouvi falar, o Leão tinha um jeito peculiar de pegar suas vítimas: levava-as para um galpão afastado, interrogava-as e arrancava as vísceras. Sempre achei que fosse lenda, mas os corpos sempre sumiam. Ele era capitão, então sempre dava um jeito das coisas acontecerem do seu jeito.
Até agora eu não via um motivo concreto para pegar o cara, apenas os quinze mil que me segurariam por uns meses. Mas, comecei a ficar curioso e fui atrás do Leão. Li tudo sobre os assassinatos bizarros, anotei umas coisas, mas não me convenci de nada. Fui até o bar que ela tinha me dado o endereço. Muitas pessoas bebendo. Na sua maioria homens com mais de cinqüenta anos.
O bar era pequeno e oferecia algumas mesas do lado de fora, na calçada. Sentei numa dessas mesas, pedi um scotch, acendi um cigarro e fiquei fitando os caras pra ver se algum deles batia com a descrição do velho Leão.
- Mais um whisky, por favor.
- Uma empadinha de frango!
- Não, obrigado.
- Essa é a melhor empada da cidade.
- Ok, mas estou sem fome.
Uma hora e nada.
- Mais um whisky.
Uma hora e meia depois, vi descer de um Monza marrom, um cara de um metro e oitenta e blá blá blá: o Leão. As fotos que eu vi do cara não batiam exatamente com ele. Ele havia envelhecido um bocado pela aparência. Vestia calça jeans com tênis brancos e camisa pólo branca: típico. Entrou no bar e foi logo saudado por todos. Parecia ser a última lata de Coca do deserto.
- Salve, Leão. Novidade?
O cara do balcão, que aparentemente parecia ser o dono da bodega, o cumprimentou e foi logo perguntando da novidade. Eu sou meio paranóico e já achei que estavam falando de algum defunto.
- O de sempre.
Ele respondeu e foi logo se servindo de uma empada e de um copo de cerveja. Eu decidi ficar por ali. Queria ver até onde iam. Seguir o Leão, ou algum dos caras do bar. A velha ia ficar pro dia seguinte.
Mais algumas horas se passaram. Tomei mais algumas doses e mandei um pouco do pó mágico pra agüentar. O mundo já estava ficando colorido pra mim quando o Leão resolveu ir embora. Paguei minha conta e fui atrás do cara. Nada. Ele foi pra casa. Senti que aquela noite tinha sido em vão. Mas, como nem tudo na vida está perdido, vi pela janela a velha discutindo com ele. Trocaram algumas palavras em voz alta e a luz da janela se apagou. Não é muito do meu feitio, mas fui até a casa. Ver algumas janelas. Aparentemente tinham ido dormir. Forcei a porta da garagem: trancada. Olhei pela janela da garagem e vi dois armários, além do Monza e uma porta que levava pra dentro da casa. Consegui abrir a janela e pulei pra dentro da garagem.

(continua) 

segunda-feira, 14 de maio de 2012

El baile de los locos



Ilustração de Daniel Gonçalves

- Nenhum lugar pra ir. Ninguém pra matar.
- Dia chato, né, man.
- E se a gente saísse por aí atrás de um pózinho mágico e de um pouco de diversão?
- Faz tempo que a gente não se diverte, hein?!
- Vamos dar uma voltinha, então.
Afirmativo como um macho no cio catei um punhado de balas de prata que estavam na primeira gaveta da mesa do escritório e meti no bolso do casaco. O Florestano sempre me disse pra nunca sair de casa sem elas, ainda mais em tempos de fim do mundo. Criaturas estranhas costumam sair às ruas nesses dias de apocalipse. Carreguei a Jéssica com as pontas ocas que tinham ali por cima. Meti a cobertura na cabeça. Fui dar uma mijada rápida e por acaso dei uma olhada no espelho do banheiro. Parecia que a velha cara não tinha mudado nada. Um pouco mais soturno e sábio, diria alguém que já morreu. Os olhos mais fundos e enfiados pra dentro do crânio, os lábios mais secos e duros, lembrando de longe o Clint Eastwood, mas com uma leve e destoante diferença: o sorriso tinha voltado aos dentes. Os velhos erros tinham ficado pra trás.
Lufus
Por um momento a imagem daquele velho safado passou pela mente. Alguns meses sem vê-lo e eu nunca tinha pensado na sua ausência. Talvez ele devesse voltar, talvez não deixe ele lá, man. Cocei o nariz. Chupei os dentes fazendo aquele barulhinho agudo e estridente. O ar passou fácil pelos buracos. Passei o pentinho vermelho na barba.
- Vâmo, man. Cê parece que vai visitá a vovozinha.
Por que a Jéssy está sempre certa?
- Olha aqui, beibes. Um pouquinho de vaidade não vai matá ninguém, ok? Tô velho e isso parece bom.
- Humpf... Pra mim você continua o mesmo idiota engraçadinho de sempre!
- Hehe. Gosto quando você fala assim.
Ela sabe como me agradar. Sempre na medida certa. Um pouco mais de cinismo e ironia e ela seria um daqueles canas da ditadura que gostavam de bolinar criancinhas e correr atrás de meninos jovenzinhos vestidos com camisetas do partidão e fazer perguntas imbecis.
HAHAHAHA
Esse pensamento me fez soltar uma gargalhada animalesca. Gosto de imaginar aqueles cretinos torturando as pessoas, sendo machões em porões de prédios abandonados, no escurinho, longe das esposas e das crianças, e da família que vai perguntar no almoço de domingo como anda o trabalho, e o imbecil vai ter a cara de pau de dizer que anda tudo bem hahahahaha, que estão capturando inimigos da nação pelas ruas papai é um herói! Eu, o Flores e o Lopes poderíamos assá-los num sete de setembro enrolados em papel alumínio hahahahaha feito peixes com os olhos esbugalhados e a língua de fora pedindo perdão que do caralho, com a bandeira nacional sobre a mesa onde pingaríamos nossas babas e chuparíamos os ossinhos dos cretinos, e lógico, aos uivos, brindaríamos com sangue.
HAHAHAHA
- Seria bem divertido, né amores?!
- Claro, man. Claro que seria.
Ela diz isso rindo com o canto da boca como faz o Florestano. Mas com ela não me irrito. Nem com o Flores. É que com ele é diferente. A risada dele é sempre sinistra. Parece que esconde o real motivo de estar rindo você é sinistro, sabia disso, Boaventura? Pergunto pro espelho que me olha sem entender nada.
- Será que dá preu tomar uma cerveja que tá na geladeira antes de sairmos?
- Por que não?
- Sei lá... bateu uma vontade de dar uma olhada pela janela e fumar um cigarro... ficar olhando a Boca Maldita.
Acendo um cigarro e vou em direção à janela. Abro. Venta muito. Olho pra baixo e dá vontade de sair voando.
- Você ainda tem esperança.
- Não.
Não há nada pra se contemplar dali de cima. Só o barulho da noite. Aperto com força o gargalo da garrafa e viro de um só gole. Descemos as escadarias do Edifício Asa e muitos barulhos preenchem o silêncio. Estupros. Violências veladas. Pequenos furtos de sensações que vazam por debaixo das portas. Dez andares de sinistros sentidos. No oito paro pra ouvir um velho gemendo de dor. Como se rastejasse do quarto ao banheiro em busca do remédio que vai fazer seu coração voltar a bater. Quinze segundos e o velho uiva baixinho como se lhe tivessem tirado algo. Encosto a mão na porta. Eu poderia entrar e acabar com isso de uma vez. O sofrimento do homem não me interessa, apenas o quadro que foi pintado quando ele quase chegava ao banheiro. A mão estática sobre a tampa da privada. Os olhos de desterro. No fundo alguém uiva. Desço. Gritos nos corredores. Muitas pessoas matam sem que saibamos. Tenho certeza que nos tapetes das portas de entrada o pó poderia nos contar o que houve. Mas já sabemos, não é mesmo? Não há o que contar. No 202 uma mulher grita com uma criança. Sabe aqueles gritos? Aqueles gritos que nos forçam a desabar e com força descomunal resistimos até os joelhos estilhaçarem em pedaços? A Jéssica se contorce. Por que ela sabe. Não há lugar pra ir. Algo explode dentro daquele apartamento. Consigo sentir. Corro em direção à porta e com um chute a arrombo. O apartamento pega fogo. Pela porta uma enxurrada de gatos foge para as escadas de emergência. A criança acuada por labaredas se esconde atrás do sofá, perto de uma mesa alta com um telefone. Estico o braço e a encosto. Ela me arranha. Os ferimentos vazam pus. Sorrimos um para o outro. Saio do apartamento e continuo descendo as escadas até chegar na portaria do prédio onde o piá da portaria abre as correspondências dos condôminos. Ele se masturba lendo uma carta escrita à mão. Não me nota. Não está nem aí. Velhas fotografias. Vejo a rua por detrás da porta de vidro que nos separa da praça onde meninos jogam bola e saio correndo pra ver se ainda dá tempo de fugir. Seguro a porta que desaba sobre mim. Jogo-a de lado e piso o petit-pavé. Estou a salvo. Mais uma vez. De volta à selva.

Percorro a rua XV em direção á Monsenhor Celso. São duas da matina. Só zumbis saem a essa hora. Identifico uns quatro, cinco. Velhos conhecidos. Vendedores de almas. Me oferecem algumas, mas digo que não.
- Hoje, não, amigo.
- Hoje vamos nos divertir.
- Mas eu tenho o que vocês querem, senhores.
- Então me dê três de uma vez.
Pego o que ele me dá. Vem num saco de pão escrito PRODUTO META-INDUSTRIALIZADO.
- Meta a putaquepariu!
Ela não se agüenta e faz um comentário ardido.
- Isso é sacanagem. Ninguém fica na XV até duas da matina pra vendê esse tipo de porcaria.
- Relaxa, amorzão.
- Relaxa o caralho! Quero vê a hora que você abrí esse pacotinho e vê que se fudeu.
Coloco a mão dentro do pacote e um escorpião pica a ponta do meu dedo. Meu dedo apodrece e cai no chão. Me abaixo e o guardo dentro do saco. Enrolo o pacote, coloco no bolso do casaco e continuo subindo a rua. Pessoas sintomáticas caminham de mãos dadas. Procuram pedras pelo vão das pedras. Lá na frente um brilho. A Catedral de Curitiba. Centenas de pessoas à sua frente rezando alto. Gritam. Berram. Esperneiam.
- Que que tá rolando?
E um mendigo ri.
Pego o homem pelo pescoço e suas veias saltam pra fora feito tentáculos. Seus olhos enchem de piche e ele começa a vomitar sanglava. Deixo-o ali caído e afundo o pé na terra para entender.
Nada.
Então, vejo um velho conhecido descendo a rua com as mãos no bolso. Ele me reconhece e conversamos um pouco sobre o de sempre. Ele me conta que ainda há esperança e que posso ficar tranqüilo com relação aos acontecimentos presentes que, segundo o rádio que anuncia do terraço do prédio ao lado, nada de mal vai nos acontecer se permanecemos unidos.
- Amém.
- Oxalá.
Nessa hora tenho vontade de aspirar todo o ar a minha volta e o faço. Os que rezam tombam. O brilho cessa. É a dor de ter contraído uma doença incurável.
- Largue isso!
É uma velha mania que eu tenho, a de obedecê-la.

Por cinco minutos ficamos em silêncio profundo. Então abrimos os olhos e nos beijamos. O gosto metálico e frio da sua boca me congela e me penetra. Não vejo mais o futuro. Só a música que paira sobre nós. Uma música feita por artesãos hábeis que se movem na velocidade da luz e nos invadem pelas unhas, por isso perdemos os controles das mãos e agimos feito bestas indomáveis por anos a fio.
- Man! Atrás de nós! Corre! Rápido!
Dobramos sete esquinas seguidas feito nós cegos, sem parar de correr, até que uma moça nos pede informação porque?. Isso nos acorda por um instante. Estamos na esquina da Cruz Machado com a Ermelino de Leão. Sentimos a Encruzilhada como parte do nosso projeto genético. A música nos percorre e nos deixa mudos. Um desejo insaciável aflora. Saco a Jéssica. Movimento de luz. Indescritível prazer. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito vezes aperto o gatilho e deixo transpirar a vontade. O suor inunda o asfalto. Oito faces partidas com os machados das pontas ocas dos projéteis de prata.
HAHAHAHAHA
- Quer saber que música toca entre um pensamento e outro?
HAHAHAHAHA

Deixemos o riso tomar conta desses últimos milésimos antes que partamos.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Sobre cafés e domingos - parte I


capas antigas da Revista LODO, provavelmente desenhos de Lord Velprost


O telefone tocou pela manhã: Urbano Medeiros.
- Detetive Linhares.
- Bom dia, Linhares. Aqui quem fala é o seu amigo Urbano Medeiros.
Grande amigo, diga-se de passagem. Um dos maiores e mais honestos jornalistas que já conheci em minha vida; uma pessoa de índole intocável e um ser humano fabuloso, pois, se tem uma coisa que me tira do sério são esses jornalistas de porta de celebridade, esses merdinhas que passam a semana pensando em algum tipo de pergunta idiota pra se fazer pruma pessoa idiota, e publicar as maiores ignomínias e mentiras sobre nós, patéticos seres humanos, donos dos fatos cotidianescos que enchem páginas de jornais. Posso afirmar, sem nenhum remorso, devido à proporção de pessoas boas nesses ramos ser baixíssima, que uma das minhas maiores decepções com Deus é a d’Ele ter enchido o mundo com advogados, jornalistas e publicitários, nessa ordem, respectivamente. E isso não é Estética da Gracinha. Talvez, o Diabo goste. Pode ser.
- Grande Urbano, o que me conta? Precisando de uns servicinhos extras?
- Olha, por incrível que pareça, estou ligando pra te convidar prum fato incomum.
- Um enterro de anão, talvez?
Estética da Gracinha.
- Não.
Disse rindo com o canto da boca, como se tivesse achado o meu comentário esdrúxulo.
– Na verdade, marquei uma reunião com alguns amigos em um café no Soho. Dei uma limpa nos armários lá de casa e gostaria de devolver algumas coisinhas que fui emprestando pelo decorrer da minha vida.
- Genial. Mas, você tem alguma coisa que é minha? Eu mesmo já não tenho quase nada.
- Pois é, Linhares, eu não tenho nada seu, mas eu te liguei pra ter você na mesa com os amigos de antigamente, rever as pessoas do passado, contar umas estórias engraçadas, enfim, pra sairmos um pouco da penumbra da vida real. Porra, somos amigos!
- Claro, Urbs. Estou lisonjeado com o convite e aparecerei sem dúvidas. Quando é?
- Domingo, no Soho, às 16 hs.
- Fechado, meu querido.
- Grande abraço.
- Abraço.
E desligamos.
Domingo, às 17 hs, cheguei no tal café do Soho. Um dia de sol dos infernos. O calor estava insuportável. Curitiba tem dessas, num dia temporais tsunâmicos e todos viramos sapos, e no outro um sol de amolecer asfalto e viramos pasta de amendoim. A preguiça se torna lugar comum e todos rumam para os cafés e parques da cidade para fazer nada e beber e paquerar e, como eu, encontrar velhos amigos.
Fui a pé. Passei no escritório para ajeitar umas coisas da semana que vem e rumei ao tal Soho. O escritório fica não muito longe deste bairro e achei melhor caminhar e dar uma desenferrujada. È um bairro bonito, com uma grande quantidade de árvores frondosas que formam belos corredores verdes nas ruas. De ruas estreitas e antigas, foi o bairro das célebres famílias (e ainda o é) da cidade, de políticos, empresários, gente importante. Estou falando dos milionários, dos caras que mandam no negócio. Esse bairro foi construído com estes alicerces, acho: o de ser o “nosso lar”. Tenho certeza que sim.
Trinta minutos de caminhada em linha reta pela Comendador Araújo – que é uma das ruas mais charmosas da cidade, com suas casas antigas e seus passeios de petit-pavé formando grandes pinheiros no chão e seus postes de luzes amarelas, que de dia ficam desligados, mas à noite dão um charme incomparável ao lugar, e quem passa por ali depois das oito da noite sem dúvida nenhuma sente uma certa nostalgia ou até mesmo pode se confundir de estar andando em alguma boulevard francesa – e eu viro à direita e avisto o café que o Medeiros me indicou.
O tal café era bacana. Um lugarzinho escondido entre alguns pés de café e cheio de pessoas agradáveis; uma varanda externa com várias mesas de madeira, e muitas pessoas normais papeando. Olhando assim, já começo a me sentir um peixe fora d’água. Não sou muito dado a essas aglomerações. Muito blá blá blá e pouca conversa, se é que você me entende, mas entrei e comecei a procurar pelos amigos de outras datas. O café é muito maior por dentro do que parece por fora: dois andares e três mezzaninos que o recortam por dentro, com um vão central e uma escada que conecta todos os andares. Logo na entrada o bar à direita e algumas mesas à esquerda. Um mezzanino para a direita e para a esquerda e para baixo um andar abaixo da terra (muito interessante) com máquina de torrar café e alguns expositores com cafés de diversos lugares do mundo (muito interessante, mesmo!), que depois eu ia me ocupar porque tenho as veias cheias desse troço, mas que por enquanto não prendeu minha atenção, pois estava à procura de Urbano (bom esse nome, parece coisa de cinema). Como não conhecia ninguém fui direto ao óbvio: comecei por esse piso de baixo procurando pelos convivas. Bingo! Lá estavam alguns dos convidados que diferente de mim não se atrasaram. Pessoas ligadas ao cinema, a literatura, ao teatro, e otras cositas más. Gentes de vários ramos da arte, digamos assim. Pessoal importante, mas do qual eu me desvencilhei havia alguns anos quando eu resolvi ser eu mesmo, ao invés de correr atrás de algo com a qual não me identificava: coisas de academia.
Urbano Medeiros estava num canto de papo com o Bernard que hoje tem dois restaurantes maravilhosos na cidade. Estavam fechando a assessoria de imprensa para 2010 quando eu cheguei acabando com o papo.
- Grande Bernie! Quanto tempo, compadre.
- Linhares, Linhares. Parece que o tempo passa mais rápido pra você. Você está com uma cara de...
O Bernie falando desse jeito me fez pensar de uma certa forma porque eu simplesmente parei de conversar com determinadas pessoas nesse meio. Ele é um completo idiota.
- Mais velho você quer dizer?
Eu disse já interrompendo o papinho.
- Não é bem isso...
- Mas é isso, Bernie. Trabalhar com a escória dá nessas coisas.
Cortei a conversinha de domingo e fui dar atenção ao Urbano.
- Obrigado pelo convite, Medeiros. Mas como você pode notar algumas pessoas não estão aqui para serem amigas.
Já saindo de fino. Ele riu maliciosamente, bom jornalista que é. Já havia sacado tudo.
- Esquece o Bernard. Eu te chamei aqui porque quero que você me ajude com uma pessoa. Outra coisa, aqui está aquilo que você me emprestou há uns dez anos, lembra? Muito obrigado.
Achei estranho, pois tenho certeza de que não há nada meu com o Urbano. Mas pelo tom da conversa sei que ele está armando alguma. Aceitei de bom grado, bom fingidor que sou. Dei um abraço nele. Ele me convidou para um café.
- Sim. Vamos pegar um café no andar de cima.
Claro que não poderíamos falar em público. A coisa devia ser mais importante do que simples devoluções de antigamente. Eu já desconfiava de alguma coisa, o Urbano jamais me convidaria para vir aqui encontrar esse bando de idiotas. Fiquei de olhos abertos com as pessoas e já saquei qüalé a do lugar e a do encontro, mas deixei o Medeiros falar. Encostamos no balcão e rapidamente nos serviram dois cafés puros, coados, e da Guatemala. Sensacional! O perfume do café era algo de sublime. Jamais tinha sentido algo assim com nossos cafés brasileiros. Um aroma cítrico de flor de laranjeira e uma suavidade de flor no sabor que me fizeram entender porque eu voltaria a essa casa de cafés pelo resto da minha vida, ao menos uma vez por dia.
- O negócio é o seguinte. Eu suspeito de que alguém aqui está a fim de me passar a perna, por isso armei este esquema de devolução de coisas e te chamei.
- Direto ao ponto, Medeiros.
- Eu tenho algo raro em meu poder e que um dos convidados quer, mas não sei quem é.
- E eu tenho de identificá-lo em meio a todos os convidados e quebrá-lo de pau e depois prendê-lo, ou vice-versa.
- Eu não sei se a pessoa é homem ou mulher. Portanto, cautela.
- E do que se trata?
- Do primeiro exemplar da Revista Lodo, que foi editado há uns 60 anos atrás e ninguém mais a viu. O exemplar que está comigo era de um amigo meu, o Vianinha, você deve lembrar dele, da época de faculdade. Eu revirei os sebos, a casa dos familiares, liguei pra todo mundo que conhecia o Vianinha e ninguém soube dar notícias nem donde ele está, nem do fim das revistas, porque todas sumiram.
- E essa tua revista? Como você a conseguiu?
- Comprei num leilão pela internet. Num site de compra e venda de livros, uma espécie de sebo eletrônico, de um cara do Rio de Janeiro que disse que o pai tinha porque conheceu o Vianinha na época do lançamento da revista, mas daí o pai do cara faleceu e o moleque acabou vendendo tudo o que o pai tinha e eu dei a sorte de conseguir o exemplar nesse sebo.
- Ok.
- Mas, de uma certa forma, ninguém sabe se essa revista está aqui com você ou não?
- Exato. Portanto, quero que você mantenha os olhos abertos pra qualquer atitude suspeita.
- Esta aqui é uma atitude suspeita.
- Por isso pedi para que...
Enquanto ele falava, um dos meninos do bar estava tirando do congelador uma outra raridade, o Maracolate. Uma torta congelada de maracujá com chocolate que a mãe do irmão do Urbano, Dona Gleuza, tinha inventado há um tempo atrás, quando ela ainda tinha uma pousada na praia. Muitas pessoas iam de Curitiba para a praia só pra comer a tal da torta. Inclusive, a pousada fechou alguns anos depois e todos voltaram pra Curitiba e abriram um negócio de tortas. O Medeiros foi pra faculdade, que foi paga com o lucro das tortas, mas, até onde eu sei, o negócio ainda está de pé e de vento em popa. Além da torta trouxeram junto um monte de pratos e talheres, os quais ele indicou que eu o ajudasse.
- ...os meninos me trouxessem a torta agora. E você vai me ajudar com os talheres.
Muito astuto. Tirou a atenção de todos com essa desculpinha esfarrapada de ir buscar uma torta e me arrastou com ele. Ele já contava com meu atraso, o que deu tempo de entreter os convivas por um tempo até ter a oportunidade de ir buscar a torta e, talvez, até cantarmos um parabéns pra você. Mas, de qualquer forma, fiquei atento aos sinais que as pessoas estavam me dando. A minha própria presença já é algo que chama a atenção e todos ali sabiam quem eu era e o que eu fazia. Voltamos para a reunião. Mas, antes de descermos novamente, tomei o meu Guatemala. Maravilhoso!
Colocamos a torta sobre a mesa e a mulher do Urbano, Mary Anne, grande artista plástica e designer da cidade, com trabalhos expostos em vários países. Uma mulher de um metro e sessenta, morena, de cabelos escuros e olhos negros, profundos e marcantes. Muito inteligente e experta se prontificou a nos ajudar a servir a todos, me liberando, assim, preu usar meus dotes vouyeurs.
Passamos mais algumas horas no recinto nos acabando com cafés de diversos países e alguns brasileiros, um mais maravilhoso que o outro, e com o Maracolate, que foi o assunto da tarde. Todos querendo roubar a receita que o Rafa de bate-pronto já colocava: “Sei apenas que tem maracujá e chocolate”. È por aí Rafa, nada de dar segredos de mão beijada pra esses safados. Porque pra mim, agora, todos eram uns safados até que se provasse o contrário.
O fato é que houveram poucos sinais de interesse ou algo do gênero que envolvesse a tal revista. Captei poucas coisas nas pessoas, mas algo me chamou a atenção: um rapaz de uns 35 anos, cabelos claros, olhos castanhos, um metro e noventa, levemente gordo (uma típica pança de cerveja, quero dizer), que a todo momento conversava com as pessoas sobre histórias em quadrinhos. Não que isso seja motivo para ele ser o larápio, mas o seu interesse saudosista em falar sempre sobre as revistas do passado começou a me chamar a atenção. Fui até ele.
- Você que é Harold? O cineasta que dirigiu “Até que a vida nos separe”?
- Isso mesmo.
Num tom pedante, típico dos idiotas que se acham os tais porque já fizeram alguma merda no cinema.
- Muito prazer, Linhares.
- Humm...
Esse “humm...” me fez pensar na cena da minha mão quebrando o seu maxilar em dois lugares, e do seu corpo caindo sobre o Maracolate depois que eu o chutei sem piedade nas costelas. Mas eu pensei no Maracolate e desisti.
- Vi você comentando sobre os gibis...
- Graphic Novels.
A interrupção conceitual sobre uma porcaria de gibi ser um gibi, ou um HQ ou uma Graphic sei lá o quê, me fez repensar a cena do Maracolate sendo destroçado por um corpo que cai. Me contive.
- Isso mesmo. Eu tenho uns exemplares que eu gostaria de doar ou vender, ou qualquer coisa que os valham, porque meu filho...
Essa de filho foi ótima. Já comecei a fazer a história do meu filho na cabeça, caso precisasse usá-la: 16 anos, mora com a mãe em Paranavaí, gosta de futebol, RPG, quadrinhos, é fã de heavy metal, não vai à praia, tem uma namorada que é escritora, vai cursar publicidade – pelo menos é o que ele pensa que vai fazer – e tem, o que é mais importante, uma mãe chamada Denise. A priori seria isso. Depois eu penso melhor como é essa minha família.
- ...tá indo estudar publicidade na Alemanha e resolveu dar cabo em algumas coisas dele. E eu me lembro dele ter comentado que tinha umas velharias guardadas. A Denise, minha ex-mulher, até comentou comigo se eu não conhecia ninguém que gostaria de dar uma olhada nesses troços.
O Harold até começou a gostar um pouco mais de mim depois da história dos gibis.
- Linhares, você disse?
- Isso mesmo.
- Bom, Linhares, eu sou um profícuo colecionador...
Um aproveitador barato, ele quis dizer.
- ...de HQ’s e Graphic Novels...
Um chato.
- ...e tenho uma coleção vastíssima com mais de duas mil revistas nacionais e internacionais...
Começou a sessão “eu pagando pau pra mim mesmo”.
- ...e sou o presidente da SGNB...
Uma sigla muito importante, imaginei.
- ...Sociedade Graphic Novels Brasileira..
Um agrupamento de nerds que conseguem passar um dia inteiro discutindo o raio do porque o cara fez um traço com a mão esquerda e não com a direita mesmo sendo destro.
- ...e acredito que as revistas do seu menino possam nos interessar e muito.
- Certo. E você quer que eu peça pra Denise as enviar pra vocês? Você quer dar uma olhada nas revistas?
- Claro, meu amigo.
Amigo?! Esse cara já estava passando do ponto. Eu realmente gostaria de dar um sopapo de mão aberta na sua cara.
- Podemos marcar uma tarde no nosso escritório e vermos as tais revistas.
- Ok. E quando pode ser?
Eu fiz essa pergunta já querendo me desvencilhar desse cretino. Eu já estava desconfiando dele, mas gostaria de dar um tempo na conversa para analisar o seu gestual a partir desse momento. Acho que ele ia começar a dar sinais de sua própria denúncia.
- Que tal na quarta-feira? Teremos uma reunião mensal da SGNB, e talvez você possa nos levar as revistas para análise.
- Perfeito! Eu peço as revistas para a minha ex-mulher e as levo na quarta, então.
- Combinado.
E estendeu a mão com um sorrisinho pérfido. Agora eu queria muito esmagar a sua cara, mas não fiz isso, nem apertei sua mão com força, isso poderia estragar o trabalho. Cumprimentei-o de forma amistosa.
- Aonde fica a Sociedade?
- Rua 13 de maio, esquina com a Mateus Leme. Na sala 152 do antigo prédio do Conservatório de Música.
- Ah, sei onde é. Fica ao lado dos teatros não é mesmo?
Às vezes, sinto-me um idiota querendo um parecer idiota.
- Com certeza...
Odeio pessoas que falam “com certeza”.
- ...É só apertar o interfone e dizer que você vai na reunião da Sociedade na sala 152. Se precisar, diga que você vai ao meu encontro. Deixarei avisado que você vai aparecer.
- Combinado, então, Harold. Quarta-feira às?
- 20:00 hs em ponto.
E disse isso com sarcasmo, referindo-se ao meu atraso. Acho que esse cara já estava me observando desde a minha chegada. Eu estava no caminho certo.
Despedi-me de todos com acenos. Deixei a sacola que o Urbano tinha me dado ao lado do Maracolate e saí. Quando já estava do lado de fora ele veio correndo.
- Ei, Linhares, o seu livro!
- Que cabeça a minha, já ia me esquecendo.
- Eu vi que você ficou um tempo conversando com o Harold. Ele é meio estranho.
- Mais do que isso, Medeiros. Ele é o nosso suspeito. Deixei a sacola de propósito sobre a mesa e vi que ele ficou interessado em seu conteúdo, da mesma forma, que eu sei que você não me deixaria sair sem ela, por isso veio correndo atrás de mim. E, também, eu precisava te tirar de lá pra te dizer essas coisas.
- Hehe, muito bem, meu amigo.
Ele me deu um abraço de despedida e disse em meu ouvido.
- Conversamos pelo telefone do escritório amanhã de manhã.
Nos olhamos como quem concorda. Virei as costas e segui o meu caminho Comendador Araújo abaixo. Já estava de noite. O frio típico de Curitiba já caía sobre meu ombro. Ergui a gola do capote, finquei a cobertura na cabeça, acendi um cigarro e fui rua abaixo até o escritório, estava curioso para ver o que o Urbano tinha colocado em minha sacola.
Caminhei devagar e quarenta minutos depois estava devidamente instalado no escritório: café, cigarro e sofá. Puxei a sacola para perto. Um livro grosso de aparentemente 400 páginas. De capa em tons de azuis e laranjas. Um autor cubano, muito bom, por sinal. Já havia lido aquele livro, mas poderia lê-lo novamente sem problema algum. Abri o livro. Para minha surpresa: miolo falso! O Medeiros sabe com quem está lidando. No miolo falso do livro alguma coisa enrolada em papel tigre, com uma fitinha azul enrolando-o. Um pequeno pacote. Tirei a fitinha e dentro do pacote estava o mapa do tesouro: a primeira edição da Revista Lodo. Não me espantou o Urbano querer que eu ficasse de posse da revista, era uma questão de segurança. O que mais me surpreendeu foi ele ter armado toda essa novela para me entregar o pacote e, ao mesmo tempo, achar quem a procurava. Soltei um riso malicioso. Recostei a cabeça no sofá. Missão de hoje: ler a primeira edição da Revista Lodo. Hoje, realmente, é meu dia de sorte.

(continua)