segunda-feira, 4 de junho de 2012

Sobre Cafés - parte 2


Weredog
Escultura de Mahen Naidoo

Na quarta-feira às oito horas da noite eu já estava devidamente aparamentado à espera de que a porta do sebo se abrisse. O Inércia ficou estacionado na frente do lugar caso eu tivesse de fazer uma fuga rápida. A Jéssica carregada até o talo no coldre. E a Lodo número 1... essa eu escondi no sapato, não nasci ontem. Hehe!
A porta abriu.
Um senhor de uns 78 anos de idade me atendeu muito educadamente.
- O rapaz deve se chamar Linhares?
- E o senhor...
- Alfredo. Alfredo Roca.
- Muito prazer, Seu Alfredo. Eu vim...
- Sim. Estão todos lhe esperando, mas antes eu gostaria de lhe oferecer um pouco da hospitalidade deste sebo.
Ele foi a passos bem lentos até atrás do balcão e retirou um bulezinho de chá com duas xícaras.
- Açúcar?
O clima do lugar era sinistro. Sabe esses sebos velhos do centro da cidade que vão acumulando tudo o que é possível, numa espécie de ânsia de que um dia alguém vai entrar lá e comprar alguma dessas coisas velhas? O sebo me parecia o navio-fantasma-das-quinquilharias. Até fiquei imaginando que o capitão do navio era esse velho, e que, na verdade, ele estava disfarçado de velho, porque por baixo daquela calça verde-musgo e daquele pulôver marrom morava um ser feito de pedaços de coisas que foram grudando em seu corpo:  Capitão Quinquilhas. Acho que era esse o seu verdadeiro nome.
- Não, por favor. Isso faz um mal desgraçado.
- Claro que sim.
O velho Quinquilhas ficou me olhando no olho enquanto disse isso.
Muito estranho. Tentei desbaratinar.
- O senhor por acaso não tem por aí umas revistas velhas?
A sua expressão mudou da água pro vinho. Como se eu tivesse dito as palavras mágicas que acessaram alguma paixão do velho. Os olhos dele brilharam de repente.
- Não fale assim, meu jovem. Aqui dentro não temos nada de velho, como você deve estar pré-concebendo. Este sebo só trabalha com raridades. Tratamos tudo aqui com muito respeito
tratamos                                                      
e cordialidade. Mas, vamos deixar de tró-ló-ló. O que você procura?
- O senhor conhece...
- Oras, bolas, por favor, me chame de Alfredo. Somos amigos agora. Gostamos das mesmas coisas.
que exagero                                  
- Ok, Mr. Alfred. Como quiser. Eu vi aqui nessa prateleira que você mantém uma coleção muito extensa da HQ Fictions.
- Na verdade, falta-me apenas a número 23.
esse velho filho-da-puta fala igual ao ridículo do Harold
- Puxa, que legal. E é muito difícil conseguir essas revistas?
- Siiimm. Muito difícil. Por exemplo, essa 23, só existe na Dinamarca e está de posse de um colecionador chamado Troels Overdal, que tem um museu de revistas chamado KontraMagasin.
- E porque você não compra dele?
- Hahaha! Não é bem assim que toca essa orquestra, meu caro. Quem tem uma revista rara como essa não chega nem a contar que tem. Imagine só o que aconteceria se descobríssemos onde estão escondidas todas as revistas raras do mundo? SERIA O CAOS!
O velho começou um discurso inflamado e já estava naquele ponto onde tudo começa a sumir da cabeça. Ficou de pé no balcão e começou a fazer a Revolução dos Gibis. Fazia tempos que eu não via alguém tão apaixonado pelo que faz. Na verdade, completamente obcecado. O nosso Capitão Quinquilhas era bem doidão.
- Mas, olha só, Seu Quinqui... digo, Seu Alfredo, eu preciso encontrar umas pessoas que estão aí nos fundos do sebo, então você me dá licença que...
O cara não estava nem aí pro que eu estava falando. Ficou lá em cima do balcão vomitando um monte de palavras em várias línguas como se o mundo já tivesse acabado e fosse esse  o momento de ressurreição. De qualquer forma, não me importei nada com isso, e até estava achando legal ficar por ali assistindo o showzinho de camarote, mas o fato é que eu saquei na hora o que estava rolando naquele lugar.
Havia uma porta aos fundos do sebo e foi por ali que eu fui. A porta abria prum corredor escuro e sem interruptores. Entrei e fui caminhando devagar. Aos fundos ficou apenas a voz do velho ecoando, ecoando, e aos poucos sumindo, sumindo, até se tornar um fantasma.
a julgar pelo formato das mãos e do nariz que no Harold e no Capitão Quinquilhas é exatamente igual e pelo fanatismo com que lidam com os gibis é óbvio que são no mínimo parentes
Fui tateando pela parede da direita e cheguei em uma outra porta. Nada de campainhas, nem trincos, nem nada. Apenas uma porta que, pelo tato, consegui identificar que havia diversas figuras em alto-relevo.  A porta abriu.
- Boa noite, Detetive Linhares.
como ele sabe?
- Por favor, entre. Temos um lugar reservado para você.
que lugar bizarro
O Harold me recebeu na porta escura sem dar sinais de dúvida nem preocupação de como eu teria chegado até ali. Entrei logo atrás dele. Não pestanejei, nem quis dar sinais de que eu estava lá para investigá-lo. Por outro lado, acho que todos ali já sabiam de tudo e estavam apenas melindrando, deixando as coisas veladas pruma espécie de gran finale.
A sala era grande e com diversas estátuas de deuses e figuras míticas, formas alegóricas de bichos conhecidos da natureza e outros bem estranhos com várias cabeças, múltiplas pernas e corpos, alguns até impossíveis de ser imaginados, e muitos armários, todos em madeira, uma madeira de cheiro forte e característico.
araucária
Todos eles entulhados de revistas. Devia existir ali pelo menos uns três mil exemplares de revistas em quadrinhos.
- Imagino que são todas raras...
- Sim, raríssimas.
O Harold estava usando uma capa marrom com uns escritos nas mangas e nas costas, e havia pelo menos mais uns trinta caras iguais a ele com os mesmos mantos mas sem escritos, acho que um tipo de hierarquia. E é lógico: nada de mulheres.
típico
- Sente-se aqui, Linhares.
Ele me levou até uma mesa ao centro da sala, puxou uma cadeira pra mim e se dirigiu à ponta da mesa. Um cara sentou do meu lado e já foi logo puxando papo.
- Espero que tenha gostado do café.
- Do café e do Capitão Quinquilhas.
- Senhor Alfredo Roca?
- Sim, o velho revolucionário que ficou berrando lá na frente. Muito engraçado o velho, ele me lembrou muito o meu avô paterno quando ele me...
- Ele é o nosso mentor. Um dos maiores colecionadores de Graphic Novels da terra. Foi ele, junto com seu neto, Harold, que montou a nossa fraternidade.
sim meu caro Chato eu tenho boa imaginação pra essas coisas
O negócio é que eu queria provocar um pouco esses caras pra ver se algum deles pisava no tomate e me dava de bandeja uma pista do verdadeiro negócio que estava rolando ali dentro. Eu já tinha certeza de uma coisa: do parentesco do Capitão e do Harold. Mas, o culto às revistas raras elevou meu ânimo. Havia algo ali que não tinha explicação: porque um bando de idiotas se reúne uma vez por semana pra idolatrar revistinhas em quadrinhos?
- Muito interessante...
- Réchaud. Pode me chamar de Réchaud.
- Muito interessante, Sr. Réchaud.
Nesse momento, Harold estava posicionado em uma das pontas e empunhava uma adaga dourada com o cabo cheio de pedras preciosas. Ele colocou adaga sobre a mesa e começou a falar em uma língua estranha. Eu não conseguia entender nada.
esses filhos da puta tão de sacanagem
O cara falou uns dez minutos. Daí, se dirigiu a mim como se eu tivesse entendido tudo o que ele tinha falado.
- Pode começar, Detetive Linhares.
começar o que porra?
Claro que ele deve ter dado indicativos da minha resposta enquanto dava aquele monólogo chato que eu deveria ter entendido. Então, mandei uma que até eu fiquei surpreso.
- Eu sou a adaga. Ela habita em mim.
Foi o que veio. Ridículo pra cacete, man! Mas atrás de um sebo na treze de maio com trinta marmanjos vestidos de monges franciscanos falando de gibis...
- a jaký klíč
E começou uma frase atrás da outra. Eu não tinha ido até lá pra isso, mas o Medeiros tinha me contratado pra isso e eu não estava a fim de levar essa bola na trave pra casa.
- A mão que segura a adaga.
- a co je ještě důležitější prst ruky
- O meu dedo.
Não sei porque eu estava dizendo isso mas, de alguma forma, eu estava certo, e a adaga sobre a mesa começou a brilhar. Eu não estava acreditando no que eu estava vendo. Os caras começaram a se levantar e a caminhar em direção à ponta da mesa. eu fiquei sentado, não estava entendendo nada, e como diria o poeta, quando você não sabe o que fazer fique parado. Todos ficaram olhando pra mim.
- nahoru, ke mně!
Agora sim eu estava fodido e mal pago.
o que esse safado falou
Continuei seguindo o conselho do poeta.
- nahoru, ke mně!
Rolou um silêncio dentro da sala. Acho que o povo ali estava sacando que era tudo uma farsa e que o melindre tinha acabado. Então, seguindo o conselho do meu amigo e sócio Fúlvio Lopes numa situação de crise, man, mesmo que você esteja errado, saque a arma primeiro, meti a mão no casaco e a Jéssica veio correndo ao meu encontro.
- Porra, Linhaça, achei que eu não sair daqui de dentro nunca!
- Relaxa, amorzão! Agora a parada é com a gente.
Levantei, meti o pé na cadeira e subi na mesa sagrada.
- Chega desse blá blá blá! Agora vamos conversar em Jessiquês! Todo mundo se joga no chão porque acabou a festinha!
Eu tinha certeza de que aquela atitude era a pior a ser tomada num lugar com trinta caras, e eu nem sei porque estava fazendo aquilo, mas me parecia que era a única coisa certa a se fazer. Enfim, vinte e nove caras deitaram no chão, menos o Harold. Ele continuou ali, olhando pra mim Bratrstvo je věčná. Aquilo começou a me irritar de uma forma estranha. Fiquei muito puto. krev je posvátná Abri a porta por onde eu tinha entrado Puzzle je slovo e fui catar o velho que estava lá fora mais calmo tomando seu café. smysl. Arrastei o Seu Quinquilhas pela gravata até lá dentro. víra aby nedošlo k rozpadnout
- Traduz!
- O que, meu filho? Qual é o problema?
- Traduz o que o teu neto tá falando!
- Mas...
- Vai, velho!
- Ele está entoando o cântico da ressurreição eterna. Quando a irmandade é ameaçada todos se agrupam em torno do líder e ele entoa esse cântico para que através da fé que todos têm no poder eterno da palavra, não sintam a dor do mal que pode afligi-los.
BAM!
Mandei um tiro pra cima e o idiota do Harold se calou.
até que enfim                                   
- Troço mais chato, né Linhaça?
- Pois é, Jéssi. Mas fique calma, já vamos pra casa.
O velho se encolheu debaixo da mesa. O resto do bando continuou em silêncio. O Harold parecia que tinha engolido um pombo.
- Olha aqui, meu caro Harold, na situação em que você se encontra você deveria sentar e relaxar um pouco.
Silêncio
- Velho, traduz!
O velho começou a traduzir.
- použít nůž, aby ho zabili
- Acho melhor vocês começarem a contar aqui pro Linhares o que acontece aqui dentro…
- je pro použití dýky
Nesse momento eu já estava começando a guardar a Jéssica, porque o clima tinha se apaziguado ali dentro, mas o Harold achou que podia salvar a tal irmandade do gibi. Só posso dizer que ele se fodeu. Tentou bancar o herói e levou um tiranbaço no meio da testa. Foi pegar a adaga pra tentar algo imbecil e acabou indo pro inferno antes do que ele desejava. O resto nem se mexeu. Achei isso estranho. Acho que a galera, na verdade, estava cagando um pro outro ali dentro. Pelo jeito estavam querendo mais é sair dali vivos e que se foda esse monte de gibis velhos e essa irmandade nerds.
O Capitão Quinquilhas, que até então me parecia um velho doidão, foi por debaixo da mesa até à ponta onde o Harold estava, e emergiu de repente com a adaga na mão. Não era mais o velhinho do café. Ele foi se transformando numa espécie de aberração, um negócio meio lobisomem. Estava com a cara toda rasgada e com sangue vazando por um monte de cortes espalhados pelo corpo inteiro. A roupa tinha rasgado inteira e o corpo estava coberto de pêlos.
- Linhaça, ele tá muito parecido com aquele cara de Guaíra, você não acha?
- É verdade, Jéssi. Bem que eu achei que já tinha visto esse bicho antes.
O Capitão Quinquilhas tinha se transformado numa aberração gigante. Um licantropo metade Rottweiller, metade lobo, de três metros de altura de mais ou menos três toneladas e ainda por cima com aquela adaga na mão. Eu e a Jéssica já conhecíamos tipinhos como esse, mas de qualquer forma é sempre um prazer poder revê-los assim, tão intimamente.
- Olha Seu Lobo, você deve tá se perguntando porque o Harold não levantou ainda, não é verdade? E não adianta vir com essa adaguinha, bancando o nervosão, que já tá tudo dominado, ok?
VLÓSH!
O bicho voou pra cima de mim e me acertou um chutaço no peito. Eu devo ter voado uns cinco metros. Só deu tempo de levantar a cabeça e empunhar a Jéssica.
PAM!
Mais uma porrada. O cara ia me destruir rapidinho se eu não acertasse pelo menos um tiro nele.
é com você Jéssica
Eu tinha carregado a Jéssi com balas de prata por precaução. Então, fechei os olhos e fui na dela.
BAM!
BAM!
BAM!
Quando dei por mim havia um corpo em cima da mesa com dois tiros no peito. Era o velho Quinquilhas.
- É uma pena, Seu Quinquis, eu tinha me afeiçoado com você.
Ele tinha voltado a ser o velhinho legal lá da frente. O Harold ainda estava lá deitado. Tínhamos agora dois corpos.
Usei o telefone do sebo pra falar com o Medeiros. Contei-lhe a história e marcamos um café na cafeteria de domingo. Prometi a ele que tomaríamos um belo Sumatra quando nos encontrássemos. Ele ficou muito feliz que a revista agora estava sã e salva.
Desliguei o telefone.
- Pena que você errou um tiro.
- Claro, né! Você não parava de se mexer!
Comecei a caminhar pelo sebo. Dei uma rápida olhada no lugar. Abri a revista e dei uma folhada na história do começo ao fim. Estava tudo lá.
- É isso aí, Jéssi. Acho que fizemos tudo como mandava o conto.
- Ok, amorzão. Vamos embora.
Como no final do conto da revista, entrei no Inércia e fui pro escritório descansar.

FIM

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