Ilustração de Daniel Gonçalves
- Nenhum lugar pra ir.
Ninguém pra matar.
- Dia chato, né, man.
- E se a gente saísse por aí
atrás de um pózinho mágico e de um pouco de diversão?
- Faz tempo que a gente não
se diverte, hein?!
- Vamos dar uma voltinha,
então.
Afirmativo como um macho no
cio catei um punhado de balas de prata que estavam na primeira gaveta da mesa
do escritório e meti no bolso do casaco. O Florestano sempre me disse pra nunca
sair de casa sem elas, ainda mais em tempos de fim do mundo. Criaturas estranhas
costumam sair às ruas nesses dias de apocalipse. Carreguei a Jéssica com as pontas
ocas que tinham ali por cima. Meti a cobertura na cabeça. Fui dar uma mijada
rápida e por acaso dei uma olhada no espelho do banheiro. Parecia que a velha
cara não tinha mudado nada. Um pouco mais soturno e sábio, diria alguém que já
morreu. Os olhos mais fundos e enfiados pra dentro do crânio, os lábios mais
secos e duros, lembrando de longe o Clint Eastwood, mas com uma leve e
destoante diferença: o sorriso tinha voltado aos dentes. Os velhos erros tinham
ficado pra trás.
Lufus
Por um momento a imagem
daquele velho safado passou pela mente. Alguns meses sem vê-lo e eu nunca tinha
pensado na sua ausência. Talvez ele devesse voltar, talvez não deixe ele lá, man. Cocei o nariz. Chupei
os dentes fazendo aquele barulhinho agudo e estridente. O ar passou fácil pelos
buracos. Passei o pentinho vermelho na barba.
- Vâmo, man. Cê parece que
vai visitá a vovozinha.
Por que a Jéssy está sempre
certa?
- Olha aqui, beibes. Um
pouquinho de vaidade não vai matá ninguém, ok? Tô velho e isso parece bom.
- Humpf... Pra mim você
continua o mesmo idiota engraçadinho de sempre!
- Hehe. Gosto quando você
fala assim.
Ela sabe como me agradar.
Sempre na medida certa. Um pouco mais de cinismo e ironia e ela seria um
daqueles canas da ditadura que gostavam de bolinar criancinhas e correr atrás
de meninos jovenzinhos vestidos com camisetas do partidão e fazer perguntas
imbecis.
HAHAHAHA
Esse pensamento me fez
soltar uma gargalhada animalesca. Gosto de imaginar aqueles cretinos torturando
as pessoas, sendo machões em porões de prédios abandonados, no escurinho, longe
das esposas e das crianças, e da família que vai perguntar no almoço de domingo
como anda o trabalho, e o imbecil vai ter a cara de pau de dizer que anda tudo
bem hahahahaha, que estão capturando
inimigos da nação pelas ruas papai é um
herói! Eu, o Flores e o Lopes poderíamos assá-los num sete de setembro
enrolados em papel alumínio hahahahaha feito
peixes com os olhos esbugalhados e a língua de fora pedindo perdão que do caralho, com a bandeira nacional
sobre a mesa onde pingaríamos nossas babas e chuparíamos os ossinhos dos
cretinos, e lógico, aos uivos, brindaríamos com sangue.
HAHAHAHA
- Seria bem divertido, né
amores?!
- Claro, man. Claro que
seria.
Ela diz isso rindo com o
canto da boca como faz o Florestano. Mas com ela não me irrito. Nem com o
Flores. É que com ele é diferente. A risada dele é sempre sinistra. Parece que
esconde o real motivo de estar rindo você
é sinistro, sabia disso, Boaventura? Pergunto pro espelho que me olha sem
entender nada.
- Será que dá preu tomar uma
cerveja que tá na geladeira antes de sairmos?
- Por que não?
- Sei lá... bateu uma
vontade de dar uma olhada pela janela e fumar um cigarro... ficar olhando a Boca
Maldita.
Acendo um cigarro e vou em
direção à janela. Abro. Venta muito. Olho pra baixo e dá vontade de sair
voando.
- Você ainda tem esperança.
- Não.
Não há nada pra se
contemplar dali de cima. Só o barulho da noite. Aperto com força o gargalo da
garrafa e viro de um só gole. Descemos as escadarias do Edifício
Asa e muitos barulhos preenchem o silêncio. Estupros. Violências veladas.
Pequenos furtos de sensações que vazam por debaixo das portas. Dez andares de
sinistros sentidos. No oito paro pra ouvir um velho gemendo de dor. Como se
rastejasse do quarto ao banheiro em busca do remédio que vai fazer seu coração
voltar a bater. Quinze segundos e o velho uiva baixinho como se lhe tivessem
tirado algo. Encosto a mão na porta. Eu poderia entrar e acabar com isso de uma
vez. O sofrimento do homem não me interessa, apenas o quadro que foi pintado quando
ele quase chegava ao banheiro. A mão estática sobre a tampa da privada. Os
olhos de desterro. No fundo alguém uiva. Desço. Gritos nos corredores. Muitas
pessoas matam sem que saibamos. Tenho certeza que nos tapetes das portas de
entrada o pó poderia nos contar o que houve. Mas já sabemos, não é mesmo? Não
há o que contar. No 202 uma mulher grita com uma criança. Sabe aqueles gritos?
Aqueles gritos que nos forçam a desabar e com força descomunal resistimos até
os joelhos estilhaçarem em pedaços? A Jéssica se contorce. Por que ela sabe.
Não há lugar pra ir. Algo explode dentro daquele apartamento. Consigo sentir.
Corro em direção à porta e com um chute a arrombo. O apartamento pega fogo.
Pela porta uma enxurrada de gatos foge para as escadas de emergência. A criança
acuada por labaredas se esconde atrás do sofá, perto de uma mesa alta com um
telefone. Estico o braço e a encosto. Ela me arranha. Os ferimentos vazam pus.
Sorrimos um para o outro. Saio do apartamento e continuo descendo as escadas
até chegar na portaria do prédio onde o piá da portaria abre as
correspondências dos condôminos. Ele se masturba lendo uma carta escrita à mão.
Não me nota. Não está nem aí. Velhas fotografias. Vejo a rua por detrás da porta de vidro que nos
separa da praça onde meninos jogam bola e saio correndo pra ver se ainda dá
tempo de fugir. Seguro a porta que desaba sobre mim. Jogo-a de lado e piso o
petit-pavé. Estou a salvo. Mais uma vez. De volta à selva.
Percorro a rua XV em direção
á Monsenhor Celso. São duas da matina. Só zumbis saem a essa hora. Identifico
uns quatro, cinco. Velhos conhecidos. Vendedores de almas. Me oferecem algumas,
mas digo que não.
- Hoje, não, amigo.
- Hoje vamos nos divertir.
- Mas eu tenho o que vocês
querem, senhores.
- Então me dê três de uma
vez.
Pego o que ele me dá. Vem
num saco de pão escrito PRODUTO META-INDUSTRIALIZADO.
- Meta a putaquepariu!
Ela não se agüenta e faz um
comentário ardido.
- Isso é sacanagem. Ninguém
fica na XV até duas da matina pra vendê esse tipo de porcaria.
- Relaxa, amorzão.
- Relaxa o caralho! Quero vê
a hora que você abrí esse pacotinho e vê que se fudeu.
Coloco a mão dentro do
pacote e um escorpião pica a ponta do meu dedo. Meu dedo apodrece e cai no
chão. Me abaixo e o guardo dentro do saco. Enrolo o pacote, coloco no bolso do casaco e continuo subindo a
rua. Pessoas sintomáticas caminham de mãos dadas. Procuram pedras pelo vão das
pedras. Lá na frente um brilho. A Catedral de Curitiba. Centenas de pessoas à
sua frente rezando alto. Gritam. Berram. Esperneiam.
- Que que tá rolando?
E um mendigo ri.
Pego o homem pelo pescoço e
suas veias saltam pra fora feito tentáculos. Seus olhos enchem de piche e ele
começa a vomitar sanglava. Deixo-o ali caído e afundo o pé na terra para
entender.
Nada.
Então, vejo um velho
conhecido descendo a rua com as mãos no bolso. Ele me reconhece e conversamos
um pouco sobre o de sempre. Ele me conta que ainda há esperança e que posso
ficar tranqüilo com relação aos acontecimentos presentes que, segundo o rádio que anuncia do terraço do prédio ao lado,
nada de mal vai nos acontecer se permanecemos unidos.
- Amém.
- Oxalá.
Nessa hora tenho vontade de
aspirar todo o ar a minha volta e o faço. Os que rezam tombam. O brilho cessa.
É a dor de ter contraído uma doença incurável.
- Largue isso!
É uma velha mania que eu
tenho, a de obedecê-la.
Por cinco minutos ficamos em
silêncio profundo. Então abrimos os olhos e nos beijamos. O gosto metálico e
frio da sua boca me congela e me penetra. Não vejo mais o futuro. Só a música
que paira sobre nós. Uma música feita por artesãos hábeis que se movem na
velocidade da luz e nos invadem pelas unhas, por isso perdemos os controles das
mãos e agimos feito bestas indomáveis por anos a fio.
- Man! Atrás de nós! Corre!
Rápido!
Dobramos sete esquinas
seguidas feito nós cegos, sem parar de correr, até que uma moça nos pede
informação porque?. Isso nos acorda por um instante. Estamos na esquina da Cruz Machado
com a Ermelino de Leão. Sentimos a Encruzilhada como parte do nosso projeto
genético. A música nos percorre e nos deixa mudos. Um desejo insaciável aflora.
Saco a Jéssica. Movimento de luz. Indescritível prazer. Um, dois, três, quatro,
cinco, seis, sete, oito vezes aperto o gatilho e deixo transpirar a vontade. O
suor inunda o asfalto. Oito faces partidas com os machados das pontas ocas dos
projéteis de prata.
HAHAHAHAHA
- Quer saber que música toca
entre um pensamento e outro?
HAHAHAHAHA
Deixemos o riso tomar conta
desses últimos milésimos antes que partamos.
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