segunda-feira, 12 de março de 2012

Investigação no Boqueirão, sexta parte



O PASSADO MORA LOGO ALÍ

Entrei no Inércia e fui o mais rápido que pude até o Alto Uberaba. O Florestano me aguardava na entrada de casa.
- Não se preocupe, Detetive. Já acalmei a Fera.
- O que aconteceu?
Eu tinha pressa em saber, mas não estava muito preocupado, porque tinha certeza de que não era algo que não podíamos resolver.
- O Fúlvio teve um ataque enquanto dormia. Bateu na jaula, se machucou um pouco, e ficava toda hora repetindo o nome de uma mulher.
- Mamá.
- É isso aí. Alguma coisa do passado?
- Uma mulher que ele se apaixonou por aí. Ainda tem uma coisa entre os dois. Vez ou outra ele vai visitá-la em seu trabalho.
- Que pelo jeito de vocês dois não deve ser num escritório de contabilidade.
- Muito perspicaz você, Florestano. Vamos lá vê-lo.
Entramos na casa. Como ainda era dia pude perceber que ela era realmente como eu imaginava. Paredes marcadas por garras de lobo; alguns vasos com Acônito; nada nas paredes e apenas um sofá velho e a mesa central com quatro cadeiras. Da sala deu pra ver que a cozinha era bem simples, apenas com a pia e um armário azul envelhecido pendurado na parede. Fomos até o fundo da casa e passamos pelo quarto de Florestano. Esse, sim, era mais bem cuidado: uma escrivaninha com muitos papéis e anotações; uma cama bem arrumada; criado-mudo; janela com cortinas escuras; um armário de imbuia muito antigo; um belo tapete persa no chão, enfim, ele presava pelo conforto no único lugar que, talvez, ele pudesse estar confortável. E aos fundos o quarto onde havia a jaula de proteção. Lufus dormia com alguns hematomas ainda presentes.
- Não se preocupe com os hematomas. Em algumas horas eles sumirão.
- A estrutura de lobo permite uma cicatrização mais rápida...
- Para algumas cicatrizes, meu amigo, sim.
- Meio pesada e, ao mesmo tempo, poética, esta frase, mas entendo o que você quer dizer.
- Dei a ele uma dose dobrada de Acônito. Talvez, só acorde pela manhã.
- E você? Ainda é noite de lua cheia.
- Sim, eu sei. Eu tenho que achar aquele safado do Tranca-Rua.
- Eu quero falar com você sobre algumas coisas de Guaíra. Você conhece essa cidade?
- Guaíra?
Seu semblante mudou da água para o vinho. Acho que acertei a veia.
- O que você sabe de Guaíra, Linhares?
- Pelo visto, menos do que você. O que te incomoda?
- Nada... só que...
Nunca imaginei que fosse ver o Boaventura gaguejar ou fraquejar ante um questionamento como esse. Tem mais merda do que eu imagino nessa tal de Guaíra.
- ...esquece, Linhares. Isso é conversa pra outra hora.
- Acho que não, Flores. Vamos falar um pouco sobre isso.
- A lua vai aparecer dentro em pouco. Não posso ficar aqui de papo com você. Mas lhe garanto que terá sua conversa.
Saiu do quarto e foi ao seu aposento. Bateu a porta. Nenhum barulho. Fiquei mais alguns minutos observando o Lufus e imaginando o que ainda iria acontecer. O caso Polyanna estava, até certo ponto, resolvido, mas ficar de babá não iria resolver meus problemas.
- Eu sei que temos que esperar mais algumas semanas até voltarmos a ativa, mas não posso ficar aqui sentado, Lufe. Vou resolver uns pepininhos por hora.
Peguei o Inércia e me mandei pro centro de Curitiba. Destino: Night Estories. Lá eu sou persona non grata e resolvi que vou resolver isso hoje. O sonho da noite passada me deixou um pouco ressabiado. Acho que eu tenho mesmo de rever umas cagadas do passado. Lá trabalha a Marcela, que é a paixãozinha do Lufe, e tem também a Larissa, uma morena de peitinhos empinados e olhinhos de menina do interior que veio pra capital pra estudar, o que de fato era verdade, que é a irmã dela, uma moça que eu tive um caso alguns anos atrás. Uma noite eu estava lá com o Lufe numa loucura sem tamanho de cocaína e whisky, e todas as meninas do bar estavam pagando pau pra gente. Nós gostávamos disso: eu porque queria esquecer a Ângela, que foi o único amor da minha vida, e o Lufus porque é um tremendo de um safado que não agüenta ficar dois dias sem buceta. Mas a Larissa não estava lá, tinha dito que não iria trabalhar naquele dia e a Marcela confirmou toda a história. Então resolvemos tocar o foda-se, e quando a gente resolve que não tem nada a perder, é aí que as grandes cagadas acontecem. Eu estava meio caidinho pela Larissa, o que de uma certa forma já me dava (eu achava que dava) o direito de ser o dono dela. Prometíamos algumas coisas um para o outro, mas tudo não passava de clichês amorosos pra compensar certas faltas. O fato é que eu tinha ciúmes dela e não queria que ela saísse com outros babacas da zona. Já passava das quatro da madrugada e eu estava bem louco. Ficávamos sempre numa área vip que tem no segundo andar e eu notei que estava rolando um burburinho no andar debaixo, umas conversas meio afoitas. Botei a cabeça pra fora da sala pra ver o que era, e era a Larissa agarrada num cara, enquanto as outras meninas discutiam com ela dizendo que era pra ela se mandar porque eu e o Lufe estávamos no bar. Senti que meu peito ia explodir e num acesso de fúria joguei a menina que estava no meu colo para o lado e feito um animal desci as escadas do puteiro. O Lufe tentou me segurar dizendo que era uma puta cagada arrumar briga a essa hora. Mas ele é meu comparsa e desceu comigo. O primeiro babaca que passou na minha frente levou um chute na boca e desmaiou. Os seguranças vieram pra cima de nós. Catei uma garrafa de vodka numa mesa e parti a cabeça do brutamontes que tentou me agarrar. Eu só enxergava o safado que estava agarrado na Lalá. O Lufe deitou mais dois seguranças enquanto eu voava por cima das mesas pra cima do cara. Ele sacou uma faca. Eu voei no seu pescoço. O Lufe sempre disse que por trás daquele cara calmo e racional havia um assassino carniceiro. Às vezes, ele até me chamava de Butcher, por causa do Açougueiro do filme do Fresnikov, um assassino frio que matava de noite e vendia a carne de seus assassinados de dia num açougue da família. O púlia me deu uma facada na barriga. Eu tomei a faca dele e só lembro de ter dado uma no braço, as outras vinte e seis estocadas que o IML contou eu não me lembro de ter dado. Depois da facada eu apaguei. Acordei no outro dia dentro de uma cela no 1º Distrito da Polícia Civil. Tive que ir ver um psiquiatra que quis me receitar uns remédios dizendo que eu tinha um monstro dentro de mim e que eu tinha de controlá-lo. Mandei o cara pra merda e fui pro escritório trabalhar. O Lufe conta que depois de arrebentar o cara eu ainda parti pra cima da Larissa e dei umas porradas nela. Ele diz que deu tempo de me apagar com uma cadeirada antes de eu matá-la. E pelo jeito eu ia matá-la. Ela ficou com grandes hematomas, mas até onde eu sei, voltou a trabalhar dois meses depois. Eu só sei que esse sonho está querendo me revelar alguma coisa. E eu vou lá ver o que é.
Estacionei a duas quadras dalí. Armei a Jéssica e mais uma amiga dela, uma pistola .380 Glock, que é fácil de guardar. Escondi uma no coldre do peito e a outra na cinta. Meti o capote e a cobertura e saí caminhando pela Cruz Machado. Só gente fina no pedaço. Da esquina já consegui ver dois seguranças na porta e mais uns perdidos que estavam rondando a área. Uma pivetada que vende crack na região: os aviões, como eles gostam de ser chamados. São todos pecinhas pequenas pro grande quebra-cabeça do tráfico. Não dei bola. Meu negócio é com a Mamá, e se possível, com a Lalá.
Fui me aproximando e os caras sacaram a minha presença. Conversaram ao pé do ouvido. Um deles veio na minha direção empunhando um cacetete. Não esbocei a mínima preocupação.
- Detetive Linhares. Que prazer revê-lo.
- Você deve ser o cara que eu desperdicei vodka na cara.
Acho que ele não gostou muito do comentário.
- Eu esperei pelo dia que eu ia quebrar a sua cara, seu nanico!
- E tá esperando o que, seu verme?
Ele abriu os braços e veio pra cima de mim com uma fúria de um gatinho mimado. Levantou o porrete no ar e desceu parecendo um cavalo chucro. Fico imaginando se não era melhor ele ir pra casa dormir, ao invés de querer me enfrentar numa noite fria e chuvosa como a de hoje.
Saí da frente e dei um chute na sua perna de apoio. O cara voou três metros e espatifou no asfalto. O capanga dele veio correndo pra cima de mim. Não saquei a Jéssica, senão a merda ia ser grande. Puxei sua amiga e fiz ele beijar o chão.
- Escuta aqui, seus merdas! A parada não é com vocês! Então, fiquem fora disso. Cadê a Mamá?
- Ela tá lá dentro. Mas você vai se fudê se entrá aí!
- É! Você vai se fudê!
Os dois resolveram cantar em coro. Engoli seco a intimada e entrei. Algumas pessoas nas mesas, música alta, e um show de strip rolando. A Mamá estava no balcão flertando com um cana da civil, dava pra ver só pela vestimenta. Esses babacas se vestem tudo do mesmo jeito, e fedem igual.
- Vim aqui falar com a Larissa.
- Escuta aqui, seu babaca! Quem foi que te deixou entrar aqui? Bob, liga pro Tenente Torres, agora! Manda ele vir aqui que tem um verme que quer morrer.
- Então, quer dizer que você tá pedindo escolta presses safados?
- Qualé, Detetive...
O cara que estava com ela sabia que eu era detetive e já estava querendo arrumar confusão. Levantou do seu banquinho e veio me peitar.
- ... acho bom você dar o fora daqui antes que a sujeira fique grande pro teu lado. Todo mundo sabe o que você fez com a mocinha.
Puxei a 380 de lado e mandei o cara sentar de novo. Eu não estava de brincadeira, mas não queria fazer mais uma chacina no boteco.
- Senta, meu querido. Relaxa e toma mais um drinque por minha conta. Aê, Bob, bota um bourbon pro rapaz que ele tá meio nervosinho. Por minha conta, policial.
Virei pra falar com a Mamá e fui recepcionado por um belo tabefe na cara.
- Seu filho-da-puta! A Larissa ficou internada três dias por causa do que você fez! Se não fosse teus contatos na polícia e o teu amiguinho, você ainda estaria mofando numa cela e sendo currado por caras duas vezes maiores que você.
- Escuta aqui, Mamá! Eu sei o que fiz e vim aqui pra discutir isso com você e com a Larissa. Cadê ela?
Ela partiu pra cima de mim me estapeando. O bar inteiro parou. Mais dois seguranças se aproximaram. O rapaz do whisky levantou e veio pra cima de mim. Puxei a pistolinha e meti na boca do safado.
- Pode pará todo mundo! Isso aqui é uma reunião de família. Ninguém vai se machucar se todo mundo ficar quietinho. A parada é com a Mamá.
O povo sentou. O cana idiota, também.
- Segurem seus rabos! Esse animalzinho não tem controle com essa merda na mão. Escuta aqui, Linhares. Nós vamos subir no meu escritório e vamos ter a tua conversa. Mas você nunca mais vai aparecer por aqui.
- Fechado.
Subimos no escritório da bodega. Contei a Mamá sobre o sonho que tive. Ela achou balela e ainda disse que isso é historinha de macho velho querendo se redimir das cagadas que fez no passado. Eu concordei. Estava querendo me redimir de alguma forma. Contei a ela o que havia ocorrido com Lufus, e que a gente ia entrar numa enrascada da braba. Ela me mandou se foder.
- Se esse teu sonho de merda não tivesse acontecido você jamais teria vindo até aqui!
- Você tem razão, Marcela. Mas eu vim. E se você acha que a cagada não tem solução, eu entendo. Então entrega isso pra Larissa.
Estiquei uma caixinha pra Mamá.
- Um anel. E daí? Agora você quer comprar o perdão da minha irmã? Some daqui seu salafrário!
Tacou o anel pela janela. Alguém ia fumar pedra a doidado naquela noite.
- Então fica assim, Marcela. Se eu não ligar, não atenda.
- Nunca mais apareça por aqui, Linhares. E avisa aquele teu amiguinho que ele me deve poucas e boas.
Desci as escadas meio mareado. Não achei que eu ia me dar mal nessa noite. A festinha já estava rolando novamente. Saí do bar e, como tudo que está ruim, ainda pode ficar pior, eis que vejo encostada na frente da boca uma viatura.
- Como tem passado, Detetive Linhares? Soube que você tava metendo o rabinho entre as pernas. Hahaha!!!
Tenente Torres com a Larissa, agarradinhos feito dois pombinhos, dentro de uma viatura da polícia.
- Vê se desaparece, Detetive. Ou as coisas podem ficar bem piores pra você.
Pensei numas duzentas frases clichês pra mandar pra esse safado, mas me calei. Pela primeira vez eu não tinha o que dizer, e a violência não iria dizer nada por mim. Acho que a besta está presa, encalacrada. Parei na esquina. Acendi um cigarro. Ainda riam de mim na frente do bar.
- Ok. Levei a pior. Tá na hora de mudar o foco e resolver de uma vez essa pendenga de Guaíra. Talvez, isso ocupe minha cabeça por uns tempos. Acreditar em sonhos, talvez, na próxima vida.
Voltei pra cabana do Flores. O Lufus já estava acordado.
- E aê, Linhaça! Que me conta? Pó, maninho, to aqui peladão nessa cela. To ficando puto!
- Segura tua onda, Lufe. Fui ver Mamá.
- O que? Cê tá loco? Os caras te juraram de morte lá na Night Estories. Cê sabe que só entra lá comigo!
- Pois é, é que tive um sonho tarde passada...
Contei a ele o que eu tinha sonhado, mas ele não me deu razão mesmo assim.
- Linhaça, fica na tua, bróder. Segura tua onda. A gente vai resolver essa parada de Guaíra e depois vâmo dá um tempo. Viajar, sei lá... Esquece a Larissa. Esquece teu passado, meu velho. Cê não apagou ninguém, por lá, apagou?
- Não. E ainda levei a pior. A Lalá tá com o Torres.
- Hahahahahaha!!!!!
- Porra, Lufe! Vai rir ainda por cima! Cacete!
- Hehe, manêro vê você assim. Não liga, não, Linhaça. Ela é da noite. Cê sabia desde o começo.
- Eu sei.
E ficamos calados um tempo. Subi fazer um café, fumar um cigarro, e ver a lua cheia. O Lufus, coitado, ainda tem de ficar nessa jaula de merda mais uns dias. Nesse tempo vou ficar por aqui. Não vou voltar pro escritório. Eu também tenho a minha jaula.

(continua)

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