O PASSADO MORA LOGO ALÍ
Entrei no
Inércia e fui o mais rápido que pude até o Alto Uberaba. O Florestano me
aguardava na entrada de casa.
- Não se
preocupe, Detetive. Já acalmei a Fera.
- O que
aconteceu?
Eu tinha
pressa em saber, mas não estava muito preocupado, porque tinha certeza de que
não era algo que não podíamos resolver.
- O Fúlvio
teve um ataque enquanto dormia. Bateu na jaula, se machucou um pouco, e ficava
toda hora repetindo o nome de uma mulher.
- Mamá.
- É isso aí.
Alguma coisa do passado?
- Uma mulher
que ele se apaixonou por aí. Ainda tem uma coisa entre os dois. Vez ou outra
ele vai visitá-la em seu trabalho.
- Que pelo
jeito de vocês dois não deve ser num escritório de contabilidade.
- Muito
perspicaz você, Florestano. Vamos lá vê-lo.
Entramos na
casa. Como ainda era dia pude perceber que ela era realmente como eu imaginava.
Paredes marcadas por garras de lobo; alguns vasos com Acônito; nada nas paredes
e apenas um sofá velho e a mesa central com quatro cadeiras. Da sala deu pra
ver que a cozinha era bem simples, apenas com a pia e um armário azul
envelhecido pendurado na parede. Fomos até o fundo da casa e passamos pelo
quarto de Florestano. Esse, sim, era mais bem cuidado: uma escrivaninha com
muitos papéis e anotações; uma cama bem arrumada; criado-mudo; janela com
cortinas escuras; um armário de imbuia muito antigo; um belo tapete persa no
chão, enfim, ele presava pelo conforto no único lugar que, talvez, ele pudesse
estar confortável. E aos fundos o quarto onde havia a jaula de proteção. Lufus
dormia com alguns hematomas ainda presentes.
- Não se
preocupe com os hematomas. Em algumas horas eles sumirão.
- A estrutura
de lobo permite uma cicatrização mais rápida...
- Para algumas
cicatrizes, meu amigo, sim.
- Meio pesada
e, ao mesmo tempo, poética, esta frase, mas entendo o que você quer dizer.
- Dei a ele
uma dose dobrada de Acônito. Talvez, só acorde pela manhã.
- E você?
Ainda é noite de lua cheia.
- Sim, eu sei.
Eu tenho que achar aquele safado do Tranca-Rua.
- Eu quero
falar com você sobre algumas coisas de Guaíra. Você conhece essa cidade?
- Guaíra?
Seu semblante
mudou da água para o vinho. Acho que acertei a veia.
- O que você sabe
de Guaíra, Linhares?
- Pelo visto,
menos do que você. O que te incomoda?
- Nada... só
que...
Nunca imaginei
que fosse ver o Boaventura gaguejar ou fraquejar ante um questionamento como
esse. Tem mais merda do que eu imagino nessa tal de Guaíra.
- ...esquece,
Linhares. Isso é conversa pra outra hora.
- Acho que
não, Flores. Vamos falar um pouco sobre isso.
- A lua vai
aparecer dentro em pouco. Não posso ficar aqui de papo com você. Mas lhe
garanto que terá sua conversa.
Saiu do quarto
e foi ao seu aposento. Bateu a porta. Nenhum barulho. Fiquei mais alguns
minutos observando o Lufus e imaginando o que ainda iria acontecer. O caso
Polyanna estava, até certo ponto, resolvido, mas ficar de babá não iria
resolver meus problemas.
- Eu sei que
temos que esperar mais algumas semanas até voltarmos a ativa, mas não posso
ficar aqui sentado, Lufe. Vou resolver uns pepininhos por hora.
Peguei o
Inércia e me mandei pro centro de Curitiba. Destino: Night Estories. Lá eu sou persona non grata e resolvi que vou
resolver isso hoje. O sonho da noite passada me deixou um pouco ressabiado.
Acho que eu tenho mesmo de rever umas cagadas do passado. Lá trabalha a
Marcela, que é a paixãozinha do Lufe, e tem também a Larissa, uma morena de
peitinhos empinados e olhinhos de menina do interior que veio pra capital pra
estudar, o que de fato era verdade, que é a irmã dela, uma moça que eu tive um
caso alguns anos atrás. Uma noite eu estava lá com o Lufe numa loucura sem
tamanho de cocaína e whisky, e todas as meninas do bar estavam pagando pau pra
gente. Nós gostávamos disso: eu porque queria esquecer a Ângela, que foi o
único amor da minha vida, e o Lufus porque é um tremendo de um safado que não
agüenta ficar dois dias sem buceta. Mas a Larissa não estava lá, tinha dito que
não iria trabalhar naquele dia e a Marcela confirmou toda a história. Então
resolvemos tocar o foda-se, e quando a gente resolve que não tem nada a perder,
é aí que as grandes cagadas acontecem. Eu estava meio caidinho pela Larissa, o
que de uma certa forma já me dava (eu achava que dava) o direito de ser o dono
dela. Prometíamos algumas coisas um para o outro, mas tudo não passava de
clichês amorosos pra compensar certas faltas. O fato é que eu tinha ciúmes dela
e não queria que ela saísse com outros babacas da zona. Já passava das quatro
da madrugada e eu estava bem louco. Ficávamos sempre numa área vip que tem no
segundo andar e eu notei que estava rolando um burburinho no andar debaixo,
umas conversas meio afoitas. Botei a cabeça pra fora da sala pra ver o que era,
e era a Larissa agarrada num cara, enquanto as outras meninas discutiam com ela
dizendo que era pra ela se mandar porque eu e o Lufe estávamos no bar. Senti
que meu peito ia explodir e num acesso de fúria joguei a menina que estava no
meu colo para o lado e feito um animal desci as escadas do puteiro. O Lufe
tentou me segurar dizendo que era uma puta cagada arrumar briga a essa hora.
Mas ele é meu comparsa e desceu comigo. O primeiro babaca que passou na minha
frente levou um chute na boca e desmaiou. Os seguranças vieram pra cima de nós.
Catei uma garrafa de vodka numa mesa e parti a cabeça do brutamontes que tentou
me agarrar. Eu só enxergava o safado que estava agarrado na Lalá. O Lufe deitou
mais dois seguranças enquanto eu voava por cima das mesas pra cima do cara. Ele
sacou uma faca. Eu voei no seu pescoço. O Lufe sempre disse que por trás
daquele cara calmo e racional havia um assassino carniceiro. Às vezes, ele até
me chamava de Butcher, por causa do
Açougueiro do filme do Fresnikov, um assassino frio que matava de noite e
vendia a carne de seus assassinados de dia num açougue da família. O púlia me
deu uma facada na barriga. Eu tomei a faca dele e só lembro de ter dado uma no
braço, as outras vinte e seis estocadas que o IML contou eu não me lembro de
ter dado. Depois da facada eu apaguei. Acordei no outro dia dentro de uma cela
no 1º Distrito da Polícia Civil. Tive que ir ver um psiquiatra que quis me
receitar uns remédios dizendo que eu tinha um monstro dentro de mim e que eu
tinha de controlá-lo. Mandei o cara pra merda e fui pro escritório trabalhar. O
Lufe conta que depois de arrebentar o cara eu ainda parti pra cima da Larissa e
dei umas porradas nela. Ele diz que deu tempo de me apagar com uma cadeirada
antes de eu matá-la. E pelo jeito eu ia matá-la. Ela ficou com grandes
hematomas, mas até onde eu sei, voltou a trabalhar dois meses depois. Eu só sei
que esse sonho está querendo me revelar alguma coisa. E eu vou lá ver o que é.
Estacionei a
duas quadras dalí. Armei a Jéssica e mais uma amiga dela, uma pistola .380
Glock, que é fácil de guardar. Escondi uma no coldre do peito e a outra na
cinta. Meti o capote e a cobertura e saí caminhando pela Cruz Machado. Só gente
fina no pedaço. Da esquina já consegui ver dois seguranças na porta e mais uns
perdidos que estavam rondando a área. Uma pivetada que vende crack na região:
os aviões, como eles gostam de ser chamados. São todos pecinhas pequenas pro
grande quebra-cabeça do tráfico. Não dei bola. Meu negócio é com a Mamá, e se
possível, com a Lalá.
Fui me
aproximando e os caras sacaram a minha presença. Conversaram ao pé do ouvido.
Um deles veio na minha direção empunhando um cacetete. Não esbocei a mínima
preocupação.
- Detetive
Linhares. Que prazer revê-lo.
- Você deve
ser o cara que eu desperdicei vodka na cara.
Acho que ele
não gostou muito do comentário.
- Eu esperei
pelo dia que eu ia quebrar a sua cara, seu nanico!
- E tá
esperando o que, seu verme?
Ele abriu os
braços e veio pra cima de mim com uma fúria de um gatinho mimado. Levantou o
porrete no ar e desceu parecendo um cavalo chucro. Fico imaginando se não era melhor
ele ir pra casa dormir, ao invés de querer me enfrentar numa noite fria e
chuvosa como a de hoje.
Saí da frente
e dei um chute na sua perna de apoio. O cara voou três metros e espatifou no
asfalto. O capanga dele veio correndo pra cima de mim. Não saquei a Jéssica,
senão a merda ia ser grande. Puxei sua amiga e fiz ele beijar o chão.
- Escuta aqui,
seus merdas! A parada não é com vocês! Então, fiquem fora disso. Cadê a Mamá?
- Ela tá lá
dentro. Mas você vai se fudê se entrá aí!
- É! Você vai
se fudê!
Os dois
resolveram cantar em coro. Engoli seco a intimada e entrei. Algumas pessoas nas
mesas, música alta, e um show de strip rolando. A Mamá estava no balcão
flertando com um cana da civil, dava pra ver só pela vestimenta. Esses babacas
se vestem tudo do mesmo jeito, e fedem igual.
- Vim aqui
falar com a Larissa.
- Escuta aqui,
seu babaca! Quem foi que te deixou entrar aqui? Bob, liga pro Tenente Torres,
agora! Manda ele vir aqui que tem um verme que quer morrer.
- Então, quer
dizer que você tá pedindo escolta presses safados?
- Qualé,
Detetive...
O cara que
estava com ela sabia que eu era detetive e já estava querendo arrumar confusão.
Levantou do seu banquinho e veio me peitar.
- ... acho bom
você dar o fora daqui antes que a sujeira fique grande pro teu lado. Todo mundo
sabe o que você fez com a mocinha.
Puxei a 380 de
lado e mandei o cara sentar de novo. Eu não estava de brincadeira, mas não
queria fazer mais uma chacina no boteco.
- Senta, meu
querido. Relaxa e toma mais um drinque por minha conta. Aê, Bob, bota um
bourbon pro rapaz que ele tá meio nervosinho. Por minha conta, policial.
Virei pra
falar com a Mamá e fui recepcionado por um belo tabefe na cara.
- Seu
filho-da-puta! A Larissa ficou internada três dias por causa do que você fez!
Se não fosse teus contatos na polícia e o teu amiguinho, você ainda estaria
mofando numa cela e sendo currado por caras duas vezes maiores que você.
- Escuta aqui,
Mamá! Eu sei o que fiz e vim aqui pra discutir isso com você e com a Larissa.
Cadê ela?
Ela partiu pra
cima de mim me estapeando. O bar inteiro parou. Mais dois seguranças se
aproximaram. O rapaz do whisky levantou e veio pra cima de mim. Puxei a
pistolinha e meti na boca do safado.
- Pode pará
todo mundo! Isso aqui é uma reunião de família. Ninguém vai se machucar se todo
mundo ficar quietinho. A parada é com a Mamá.
O povo sentou.
O cana idiota, também.
- Segurem seus
rabos! Esse animalzinho não tem controle com essa merda na mão. Escuta aqui,
Linhares. Nós vamos subir no meu escritório e vamos ter a tua conversa. Mas
você nunca mais vai aparecer por aqui.
- Fechado.
Subimos no
escritório da bodega. Contei a Mamá sobre o sonho que tive. Ela achou balela e
ainda disse que isso é historinha de macho velho querendo se redimir das
cagadas que fez no passado. Eu concordei. Estava querendo me redimir de alguma
forma. Contei a ela o que havia ocorrido com Lufus, e que a gente ia entrar
numa enrascada da braba. Ela me mandou se foder.
- Se esse teu
sonho de merda não tivesse acontecido você jamais teria vindo até aqui!
- Você tem
razão, Marcela. Mas eu vim. E se você acha que a cagada não tem solução, eu
entendo. Então entrega isso pra Larissa.
Estiquei uma
caixinha pra Mamá.
- Um anel. E
daí? Agora você quer comprar o perdão da minha irmã? Some daqui seu salafrário!
Tacou o anel
pela janela. Alguém ia fumar pedra a doidado naquela noite.
- Então fica
assim, Marcela. Se eu não ligar, não atenda.
- Nunca mais
apareça por aqui, Linhares. E avisa aquele teu amiguinho que ele me deve poucas
e boas.
Desci as
escadas meio mareado. Não achei que eu ia me dar mal nessa noite. A festinha já
estava rolando novamente. Saí do bar e, como tudo que está ruim, ainda pode
ficar pior, eis que vejo encostada na frente da boca uma viatura.
- Como tem
passado, Detetive Linhares? Soube que você tava metendo o rabinho entre as
pernas. Hahaha!!!
Tenente Torres
com a Larissa, agarradinhos feito dois pombinhos, dentro de uma viatura da
polícia.
- Vê se
desaparece, Detetive. Ou as coisas podem ficar bem piores pra você.
Pensei numas
duzentas frases clichês pra mandar pra esse safado, mas me calei. Pela primeira
vez eu não tinha o que dizer, e a violência não iria dizer nada por mim. Acho
que a besta está presa, encalacrada. Parei na esquina. Acendi um cigarro. Ainda
riam de mim na frente do bar.
- Ok. Levei a
pior. Tá na hora de mudar o foco e resolver de uma vez essa pendenga de Guaíra.
Talvez, isso ocupe minha cabeça por uns tempos. Acreditar em sonhos, talvez, na
próxima vida.
Voltei pra
cabana do Flores. O Lufus já estava acordado.
- E aê, Linhaça!
Que me conta? Pó, maninho, to aqui peladão nessa cela. To ficando puto!
- Segura tua
onda, Lufe. Fui ver Mamá.
- O que? Cê tá
loco? Os caras te juraram de morte lá na Night Estories. Cê sabe que só entra
lá comigo!
- Pois é, é
que tive um sonho tarde passada...
Contei a ele o
que eu tinha sonhado, mas ele não me deu razão mesmo assim.
- Linhaça,
fica na tua, bróder. Segura tua onda. A gente vai resolver essa parada de
Guaíra e depois vâmo dá um tempo. Viajar, sei lá... Esquece a Larissa. Esquece
teu passado, meu velho. Cê não apagou ninguém, por lá, apagou?
- Não. E ainda
levei a pior. A Lalá tá com o Torres.
-
Hahahahahaha!!!!!
- Porra, Lufe!
Vai rir ainda por cima! Cacete!
- Hehe, manêro
vê você assim. Não liga, não, Linhaça. Ela é da noite. Cê sabia desde o começo.
- Eu sei.
E ficamos
calados um tempo. Subi fazer um café, fumar um cigarro, e ver a lua cheia. O
Lufus, coitado, ainda tem de ficar nessa jaula de merda mais uns dias. Nesse
tempo vou ficar por aqui. Não vou voltar pro escritório. Eu também tenho a
minha jaula.
(continua)
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