Ilustração de Daniel Gonçalves
A BESTA ACORDA
Subimos até a
sala para terminar o charuto do começo da noite.
- Você, pelo
jeito, não gosta muito de luz.
- Não nos
damos muito bem com a claridade. Outro café?
- Por favor.
Estávamos nos
tornando amigos, e isso me interessava. Boaventura perguntou, enquanto servia
mais uma caneca de café.
- Com relação
ao assassinato dos dois policiais, Linhares, pode deixar comigo que eu dou um
jeito nisso.
- Entendo e
aprovo a sua ajuda, mas e a Polyanna?
- Eu vou lhe
conseguir umas fotos, uns documentos.
- Material
forjado?
- De jeito
nenhum. Com quem você acha que está lidando, Detetive?
- Não falei
por mal, Man, mas é que recebemos uma grana boa e acho que temos de dar algumas
satisfações a nossa cliente.
- Eu entendo.
Mas preciso que você entenda uma coisa: não é um cara, simplesmente, que
estripou os policiais. É um lobo.
- Pois é,
depois de ler um pedaço do seu livro e ver o que aconteceu com o Lufus eu já
imaginava algo do gênero.
- Então você
entende que não poderá caçá-lo?
- Por um lado,
sim...
- E pelo outro
também!
Disse, num tom
de voz mais agressivo, como se tentasse me intimidar. E continuou, um pouco
mais ameno.
- Ele, antes
de tudo, é um irmão de maldição, você me entende?
- E como você
vai resolver isso?
- Acredito que
não podemos revelar à sua cliente que lobisomens estão atacando pessoas no
Boqueirão, assim como, não poderei incriminar um irmão. O que eu proponho é que
você volte e converse com ela. Diga que as investigações estão um pouco lentas,
que você conversou com o Florestano, e que ele sabe quem fez isso. Isso vai nos
dar tempo até encontrarmos a solução adequada para o crime.
- Certo.
Enquanto isso você cuida do Lufe.
- Eu estou
perseguindo um cara chamado Stelinha Tranca-Rua há meses, e acho que ele vai
vir a calhar com esse assassinato. Ele caça michês próximo ao terminal. A
polícia ainda não resolveu o crime. Acho que podemos colocá-lo no jogo.
- Isso seria
manipular as provas.
- Se você
preferir colocar na mídia que lobisomens andam espreitando a zona oeste de
Curitiba...
- Já entendi,
Flores, já entendi.
Levantei e fui
levar a caneca de café na pia.
- Eu vou
conversar com a Polyanna. Amanhã pela noite volto aqui.
- Pegue. Estas
são cópias das chaves das portas aqui de casa. Tente não mexer com o Lopes. Ele
pode trucidá-lo caso saia da jaula.
- Cuide bem
dele, Flores. Amanhã eu volto.
- Tenha
cuidado ao andar por aqui de noite. Ainda estamos em lua cheia.
- Ainda tenho
seis balas de prata. E eu sei me cuidar sozinho.
Saí da casa do
Boaventura. O carro estava com as portas abertas. Não tinha me lembrado de
trancá-lo, mas pelo visto, ninguém ousa chegar perto da casa do Florestano, a
não ser os próprios “irmãos”, como ele mesmo gosta de chamar essas criaturas
que rondam essa região pelas noites de lua cheia.
Essa história
de matador de michês, talvez venha a calhar. Terei de ser cauteloso com a Dona
Polyanna. Qualquer movimento em falso e tudo pode vir à tona. Não quero expor o
Boaventura, nem o Lufus.
- O que me
intriga é esse tempo de espera entre uma lua cheia e outra. Não sei o que vai
acontecer com o Lufus.
Entrei no
carro e fui até o escritório. Mais café, cigarros, e um relatório para entregar
à Polyanna pela manhã.
- Espero que
Florestano saiba o que está fazendo. Metade da grana irá para credores, e não
teremos donde tirar dinheiro caso o plano do meu “amigo” dê errado. E ainda por
cima, temos de ir até Guaíra rever o Cézinha Maluco. Vou conversar com o
Florestano sobre esse cara, talvez ele não ligue de ir até Guaíra conosco e,
quem sabe, até dar uma “patinha” com aqueles safados.
Fechei o
arquivo e fui dormir. Ali mesmo, no sofá.
Acordei com o
telefone tocando. 08:43 da manhã.
- Merda! Quem
será a essa hora? Lopes e Linhares, bom dia.
- Olá,
Detetive.
A voz suave e
amena da Polyanna. Bom para se começar o dia. Saí do mausoléu.
- Bom dia,
Dona Polya...
- Apenas
Polyanna, por favor.
- Claro,
Polyanna.
- Como andam
as investigações?
- Consegui
algo de concreto com o Florestano Boaventura. Fomos entrevistá-lo noite passada
e ele nos deu ótimas pistas sobre o assassino.
- Por favor...
- Ele nos
contou que a alguns meses um rapaz anda perseguindo michês próximo ao terminal
do Boqueirão, e que acha que os dois policias andaram se envolvendo com esse
matador...
- Matador? Não
era apenas um rapaz?
- Sim. Ele
anda estripando michês no Boqueirão e a polícia não consegue capturá-lo.
- Detetive,
desculpe interrompê-lo, mas, tenho contato em todas as polícias e não soube de
nada disso. O que você tem a me dizer?
- Acredite em
mim, Polyanna, o Florestano sabe o que está dizendo. Se a polícia local ainda
não chegou nesse cara, e nem sabe a cara que ele tem, não é problema nosso. Nós
vamos capturá-lo!
- E posso
saber como, se ninguém mais sabe disso?
- Eu preparei
um relatório para você. Estou lhe enviando agora por fax.
- Ótimo.
Conversamos depois.
E desligou.
- Tchau, para
a senhora também.
Acho que ela
não engoliu a história de estripador, mas depois de ler o relatório, talvez
acredite. Preciso das fotos e dos documentos que o Florestano falou que ia
arranjar, ou de algo que prove que esse tal de Tranca-Rua existe e que está
estripando pessoas pelo Boqueirão.
Relaxei um
pouco. A conversa com a Polyanna já tinha andado e eu ainda tinha o dia inteiro
pela frente. Resolvi ler mais algumas coisas sobre lobisomens no livro que o
Flores me deu. Adormeci.
- Aê, Linhaça!
Levanta seu animal! Vai passá o dia inteiro dormindo?
- Qualé, Lufe?
Tá falando com quem? Que tom é esse?
- Cara! Não
desbaratina a conversa! Você sabe do que eu tô falando!
- Que sei do
que você tá falando? Você tá louco, Lufe?
- E não me
chama de Lufe! Só a Mamá me chama de Lufe! Donde cê tirô a idéia que cê pode me
chama de Lufe também?
O Lufus estava
muito estranho. Tudo estava muito estranho. Eu não estava entendendo qual era a
dele, mas não estava disposto a levar desaforo pra casa.
- Seguinte,
Lufus. Você deve estar pirando em falar comigo nesse tom. Qualé a tua?
- Olha aqui,
Linhares, olha aqui essa foto, bróder!
Ele me
estendeu uma foto da irmã da Mamá. Toda quebrada. Devia ter levado umas boas porradas.
- Cacete,
Lufus! O que aconteceu com a Larissa?
-
Hahahahahaha!
Riu
diabolicamente, como eu nunca o tinha visto rir. Era como se uma legião de
demônios tivessem possuído seu corpo de repente. Seus olhos estavam profundos e
infinitos, mas ao mesmo tempo, cheios de fúria e raiva.
- Ela tá toda
quebrada, tá vendo, Linhaça?
- Tô, mas o
que você quer com isso? Vâmo pegá o safado que fez isso com ela!
E num
movimento súbito e violento o Lufus me agarrou pelo pescoço. Suas mãos tinham
se transformado em garras e seu corpo estava todo coberto de pêlos. Sua
mandíbula tinha arrebentado a ossatura da boca e seus dentes estavam três vezes
maiores. Ele estava três vezes maior. O Lufus, agora, fazia jus ao apelido.
Ele me
arremessou pro outro lado do escritório. Eu bati com as costas no nosso quadro
do churrasco que se espatifou no chão.
- Merda! Ele
se transformou na fera! Preciso contatar o Florestano. Não posso sacar a
Jéssica.
Pensei
e levantei tentando acalmá-lo.
-
Calma, Lufe! Cê tá se transformando.
-
Não me chama de Lufe!!!
Disse,
berrando como um animal selvagem.
-
A Lalá tá toda quebrada e eu vi você batendo nela, seu canalha! Ele era minha
irmãzinha! Agora eu vou ter de bater em você, tá ligado, bróder?
-
Acho que isso não vai acontecer, Lufus. Cê sabe que se eu sacar a Jéssi...
E num
movimento extremamente rápido para os olhos humanos ele pulou em cima de mim
travando minhas mãos e pernas. Ele devia estar pesando uns quatrocentos quilos.
Babava na
minha cara, falando lentamente.
- Agora, o
Lufe vai batê em você, maninho.
Com as pontas
dos dedos consegui chegar na Jéssica. Ele vai se arrepender de babar na minha
cara, infelizmente: ou sou eu, ou é ele!
Suas patas
pressionavam meus braços que iriam quebrar em segundos. Eu tinha de ser rápido.
Ele abriu sua enorme mandíbula ao mesmo tempo em que eu consegui alcançar o
gatilho da Jéssica. Nos movimentamos na mesma velocidade e tempo.
VUSSSHHH!!!
BAMMM!!!
Abriu-se um
clarão no escritório. O barulho pôde ser ouvido a quilômetros de distância.
Levantei num pulo. Já era final de tarde. O telefone berrava.
- Alô?!
- Linhares!
Corra aqui pra casa!
Era a voz do
Florestano. Vesti meu casaco e saí voando do escritório.
- Merda! Acho
que aconteceu alguma coisa com o Lufe.
(continua)
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