sábado, 3 de março de 2012

Investigação no Boqueirão, terceira parte

Ilustração de Daniel Gonçalves


FLORESTANO BOAVENTURA


O Lufus voltou quinze minutos depois que a Dona Polyanna havia saído. Trouxe café, cigarros e aquelas tortinhas de requeijão que são uma maravilha. Já chegou reclamando.

            - Seguinte, Linhaça. Tá aqui tuas tortinhas que eu sei que você ama, presente do Lufe Big Boss, hehe, e seus cigarros e seu café, tá tudo aí.

            - Valeu, Lufe.

            - Déizão, aê, maninho.

            - Quê?

            - Hehe, brincadeira, bróder. Cadê a gran-fina do Batel?

            - Já foi.

            - Pô, Linhaça, a gente não pode ficar dando moral pressas mocinha que vem aqui querendo esnobá a gente só porque são cheias da grana e...

            Disse, enquanto eu estava com a boca cheia de tortinhas de requeijão. O Lufe falava e falava e falava e eu só conseguia prestar atenção nas tortinhas. É uma espécie de pastel de belém, só que mil e duzentas e quatro vezes melhor. Ela é quente e salgada, feita com massa folhada (folhas de massa de croissant, tipo francês, feita na manteiga, de verdade, não aquela massa de merda que é vendida por aí nas padocas, que estufa a pança, parece que você comeu um dinossauro. O segredo do croissant está na massa, que deve ser semifolhada. A massa semifolhada possui menos gorduras, menos dobras e leva fermento biológico. As dobras são responsáveis pela separação da massa e das camadas de gordura que proporcionam a "folhagem" do croissant...) e cream cheese. Às vezes, a Dona Yolanda, dona da confeitaria, ainda faz uma mistura, junto com o cream cheese, de manjericão e pimenta rosa: é sensacional. Mas ela é de lua, como nós, e não é todo dia que tem a tortinha com esse creminho de manjericão. A de hoje veio normal, só cream cheese, o que já é fantástico por si só. Mas veja só, o Lufus ainda fala.

            - ...daí ela sai todo pomposa achando que a ralé aqui vai resolver o pepino dela. Ô, Linhares, cê tá me ouvindo, porra?

            - Uhum... (um bom croissant deve ter um bom aspecto, como uma lua em quarto crescente, com uma crosta crocante e uma bela cor dourada. As pontas devem estar descoladas do meio, e o miolo deve ser alvo, aerado, e mostrar a consistência certa...)

            - Porra, Linhaça, sempre que eu te trago essas tortinhas você entra nesse mundo paralelo. Daí não dá pra gente conversá! Eu fico falando sozinho que nem um bobo!

            - Uhum.... (os defeitos mais comuns, que são os de padoca, são ser engordurado pelo uso de manteiga ruim; massa com sabor muito doce por utilizar muito açúcar pra mascarar ingredientes medíocres; cor sem uniformidade, por defeito do forno...)

            - LINHARES!

            - Quê, cacete?

            - Tá me ouvindo agora?

            - Eu tô sempre te ouvindo, bonitão, hehe.

            - Então, presta a atenção. Eu tava falando da moça que saiu daqui, o que rolou com ela, sem estética da gracinha, hein!?

            - Fechei em cinco mil o trabalho, ou a primeira parte dele...

            - Cacete! Grana boa.

            - Pois é, mas ela não gostou muito e...

            - Safada! Gran-fina e no mínimo querendo desconto! Deve ter pedido pra parcelá e essas coisas não é mesmo? Esse ricaços são todos iguais, um bando de salafrários! Quero ver a hora que...

            -... fechamos em oito mil.

            -... não tiver mais ninguém pra defendê esses pilant... O quê? Oito mil mangos? Porra, Linhaça, às vezes você me surpreende.

            - É isso que eu tô te falando, oito pau o trabalho. Mas temos de começar já.

            - Póde crê, maninho. Vâmo já!

            - Vâmo carregá o Inércia e vâmo embora.

            - Ela me falou de um cara no Alto Uberaba, um tal de Florestano Boaventura, um escritor de contos sinistros, que pode nos ajudar.

            - Putz, não é um desses caras que você fica lendo, é?

            - Não é só isso, ele é o maior escritor de contos pulp que eu já li. O cara é phóda!

            - Tá, tá, não preciso ouvir isso. Vâmo duma vez. Cê sabe que eu acho uma merda esses papinhos de lobisomen, vampiro, chupa-cabras, isso é tudo merda!

            - Ok, mas vamos ter de conhecer o cara e ver o que ele sabe.

            - Você sabe onde ele mora?

            - Sei. Fica na floresta do Alto Uberaba.

            - Então vâmo duma vez que eu não tenho saco pressas coisas. Quero sabê é da matança, hehe.

            Lufus levantou, catou suas coisas e já foi saindo. Eu carreguei a Jéssica e ainda peguei mais umas tortinhas pra ir comendo no caminho. Até o Alto Uberaba vamos levar uns trinta minutos e dá pra comer mais umas duas tortinhas.

            Montamos no Inércia e saímos. A chuva deve ter transformado o Uberaba e as adjacências num pântano. Catei os dois pares de botinas e levei junto; mais o café, cigarros, e toda a parafernália para sobreviver um dia longe da civilização. O Lufus já tinha preparado a viatura.

            - Linhaça, só não vai ficar pagando pau pro cara, né? A gente tem um servicinho pra fazê.

            - Ta bom, Lufus. A coisa será rápida. Só preciso perguntar pra ele se ele sabe do que tá rolando.

            - Certo. Vambora.

            Cinqüenta minutos depois estávamos na frente do casebre do Boaventura. Não avisamos que viríamos, então, fui bem cauteloso. Uma casa de madeira bem simples no meio do mato. Realmente, o lugar repleto de árvores, na sua maioria pinheiros, dá um tom sinistro ao lugar. Chegamos no final do dia. O sol já estava indo embora. A chuva parou e deixou um céu limpo e repleto de estrelas. Lua cheia, o lugar está claro. Dá pra ver a casa por detrás de umas árvores.

            - Então, Lufe? Vâmo junto ou separado?

            - Tsca, Linhares, você vai ficar de papinho com o cara. Eu vou ficar no carro curtindo um Derruba Delinqüente. Se precisar de mim dá um grito que eu vou em teu socorro, minha princesa, hihihi.

            Bateu a porta do carro e ficou lá curtindo a fitinha. Tudo bem. O negócio aqui, pelo jeito, será bem rápido. O Lufus não notou, mas de baixo do meu capote eu levei umas revistas pro Florestano dar uns autógrafos. Se o Lufus fica sabendo disso vai tirar sarro de mim por uns trezentos anos. Fui chegando devagar. Não queria assustar o velhote. Toquei a campainha.

            - A porta está aberta! Pode entrar! Espere-me na sala que eu já vou!

Disse uma voz meio velha, mas suave e forte. Típica de indivíduos que tem precisão no que dizem e fazem.

- Que escuridão da porra! O que aconteceu? Não pagou a conta?

Quis fazer uma brincadeirinha, estética da gracinha, pra ver se quebrava um pouco o clima formal da conversa.

- Caiu a maldita chave da luz! Estou terminando de consertar aqui atrás e já chego aí. Estou com problemas desde a última noite de chuvarada.

- Florestano. Seu nome é este, né? Florestano Boaventura. Escritor daquela revista de contos sujos. Eu conheço! Adorei aquela história da seita dos Basiliscos. Genial! Tenho várias revistas deste tipo. Coleciono. Conhece a X9?

- Este conto não é meu! Mas é muito bom mesmo. Pode ficar a vontade detetive, tem café quente na térmica, se desejar. Aceita um charuto? Têm uma caixa aí na mesa.

- Claro! Vou aceitar um charuto então. Humm, cheirosos! São cubanos? Estas chuvas tem feito um estrago na cidade né? Quer ajuda? Entendo um pouco destas coisas, já fui eletricista. Sabe como é, nessa vida a gente tem de se virar, né? Aliás, deixe eu me apresentar. Meu nome é Detetive Linhares, mas pode chamar só de Linhares.

- Estão investigando o que, detetive? Algum maníaco a solta no bairro? O Uberaba está cada vez pior. O crack está violento por aqui. Esta droga é o diabo! Os caras andam feito zumbis. Né, não? Ontem mesmo teve tiroteio ali pro lado do canal Belém.

A coisa já estava começando a ficar estranha. A voz do Florestano não estava no mesmo tom de quando eu cheguei. Ele já devia suspeitar do que estávamos querendo. Não viemos aqui pra pedir autógrafos e acho que esse velhote sabe de alguma coisa e está se preparando pra algo pior.

- Ué, parece que agora escutei sua voz de outro lado. Onde você está afinal? Estamos atrás de coisa pior, encontraram corpos humanos retalhados aqui na área. Parece coisa de uma fera ou chupa-cabras. Bestial o negócio! Você não iria querer ver. Bem, ou gostaria. Afinal seus contos tratam disso, não é? Soube de alguma coisa? Os vizinhos comentaram algo? Você mora há quanto tempo aqui?

Umas plantas estranhas espalhadas pela sala; quadros esquisitos; algumas marcas de arranhões pelas paredes e na porta de entrada; uma luz sombria. Esse lugar está me cheirando confusão. Acho que esse Boaventura deve saber bem mais do que estamos conversando, ou deve estar envolvido em alguma merda grande. Seus contos são bons demais pra quem vive isolado nesse matagal. Ele deve viver seus contos e depois vem pra cá pra escrever. Acho que vou ter de entrar nesse quarto e ver o que essa cara está fazendo. Saquei a Jéssica. Dei dois passos em direção ao quarto escuro. Balela essa historinha de consertar a luz, esse cara tem culpa no cartório. Devagar fui avançando. Do escuro uma fera feito um lobo rompeu para a luz num salto.

- Merda!

Não tive tempo de reagir. O cara, ou aquela besta, me catou pelo pescoço e me colou no teto da casa. Ele devia ter uns dois metros de altura e a força de trinta homens. A boca guardava dentes pontiagudos e bestiais. Os olhos brilhavam um vermelho rubi: olhos de lobo. Cacete, eu estava com as costas pregadas no teto da casa do Florestano e o cara é um lobisomen. Eu leio muito sobre isso mas nunca me imaginei sendo apresentado a um desses bichos dessa forma. Eu não conseguia falar. O safado estava me esganando e o mundo já tinha começado a girar.

- Escute o que tenho a dizer, detetive. Se quisesse te ferrar já teria o feito quando pisou aqui dentro. Dez segundos eu precisaria para transformar você e seu colega balofo em comida de lobisomem. Se eu poupei-os é porque quero ajudar. Portanto, fique bem calminho e continue a fumar o charuto enquanto eu falo. Não adianta olhar para sua pistola, ela não será útil aqui.

Merda! O cara me arremessou no sofá. Caí feito desenho animado. Fiquei meio tonto pela falta de ar. Esfreguei os olhos. O lobo estava vindo em minha direção. Fiquei parado. Ele pegou o charuto que estava no chão e me levou até a boca. Reacendeu a brasa. Passei a mão no pescoço. Ele poderia ter me matado só com o susto, mas não quis. Acho que ele está falando a verdade. Vou ouvir o que ele tem a dizer. Na verdade, essa é a minha única opção. Visto que o cara é um lobisomem e eu, apenas eu.

- Vocês estão certos quanto aos ataques. Há uma besta agindo lá fora. Mas não tenho nada a ver com isso. Como pode ver, consegui dominar a fera. Praga maldita. Tive que me adaptar. O lado selvagem é sádico. Escrever foi minha redenção. Desenvolver o lado racional inibe a condição. Foi difícil no começo. Você não imagina quanto. Levei alguns anos para chegar nisso. A criatura que vocês procuram está no mesmo processo. Existem muitos por aí. Em todos os bairros. Sabe como é, quando estamos em temporada de aprendizado saímos mordendo todo mundo. O instinto domina. São apenas corpos em movimento na escuridão. Somos guiados pelo cheiro.

Recuperei o fôlego. Eu acreditei no que ele estava falando. Quero ver convencer o Lufus que existem mais lobos correndo por aí e atacando pessoas em noites de lua cheia.

- Precisamos deter esta fera. Ou ela fará mais vítimas. E outra, temos que fazer isso antes que a notícia chegue nos ouvidos dos jornalistas. Como posso confiar em você? E se estiver mentindo? Terei que investigar a sua casa!

- Você não está em condições de impor alguma coisa, detetive...

Tiros do lado de fora. Pelo barulho: calibres 38 cuspindo em alta velocidade. Lufus! Olhamos pela janela e vimos o Fúlvio de pé, com a porta do carro aberta atirando em direção ao breu. Corremos na mesma hora para ajudá-lo.

- Ei, Detetive. Tem outra coisa. Essas tuas balinhas não fazem nem cócegas em nós. Pegue isso aqui. Você vai precisar disso.

Florestano me entregou algumas balas de prata. Preenchi o carregador.

- Valeu, man.

Saímos correndo da casa. Encontrei o Lufus caído no chão, com o pescoço todo estourado. Um lobo se alimentava da carne do Lufe. Florestano saiu do meio do matagal numa velocidade assustadora e voou sobre o outro lobo. Começaram um combate muito voraz. Eu fui até o Lufus para ver se ele ainda estava vivo.

- Lufus! Fala comigo, meu velho!

- Ããã...Linha...

Ele estava fraco e não conseguia falar direito. Seja lá o que for o que o bicho fez com ele, não estourou de fato o pescoço. Foi uma mordida, mas pelo rasgo o Lufe deve ter se segurado e dado uns tiros nele.

- Não atravessou a garganta, nem chegou nas cordas vocais. Você ainda vai ter muito tempo pra falar besteiras, Lufe. Fica tranqüilo. Eu tenho um negocinho pra fazer agora.

Peguei a Jéssica e fui em direção ao mato. Um lobo de pelagem ruiva estava em cima do Boaventura com a bocarra pronta pra arrebentar a sua cara. Ele tentava segurar a boca do lobo ruivo com as mãos. Parecia querer estourá-la.

- Mas esse serviço de estourar as coisas é meu!

Um tiro de prata no meio do peito. Teria esvaziado a Jéssica, mas talvez eu ainda precise dessas balas hoje. O monstro agonizou por alguns segundos e morreu aos nossos olhos. Todo lobisomem, depois que morre, volta a sua forma humana. Sinistro o que estava acontecendo ali. Só conhecia essas coisas pelas revistas e contos. Boaventura se levantou. Ele parecia um ser humano normal. Agia como se fosse um, apesar da sua forma de lobo.

- Como está seu colega? Ainda vive?

- Sim, mas acho que a maldição o tocou.

- Vamos levá-lo para minha casa. Te ajudarei com os curativos.

- Ele vai virar isso... que você é? Digo...

- Só na próxima lua cheia. Arraste-o para dentro. Darei um jeito no cadáver.

Levei Lufus para dentro da casa de Florestano. Ele ficou ali mais um tempo. Provavelmente, vai se alimentar do corpo daquele homem. Observei por um tempo. Interessante, eu diria. Ele não deixou um pedaço de corpo sequer. Limpou a área como diria um detetive de primeira. Gostei desse cara.

- Deixar rastros é coisa de amador.

(continua)

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