Ilustração de Daniel Gonçalves
FLORESTANO BOAVENTURA
O Lufus voltou quinze minutos depois que a Dona Polyanna havia saído.
Trouxe café, cigarros e aquelas tortinhas de requeijão que são uma maravilha.
Já chegou reclamando.
- Seguinte, Linhaça. Tá aqui tuas
tortinhas que eu sei que você ama, presente do Lufe Big Boss, hehe, e seus
cigarros e seu café, tá tudo aí.
- Valeu, Lufe.
- Déizão, aê, maninho.
- Quê?
- Hehe, brincadeira, bróder. Cadê a
gran-fina do Batel?
- Já foi.
- Pô, Linhaça, a gente não pode
ficar dando moral pressas mocinha que vem aqui querendo esnobá a gente só
porque são cheias da grana e...
Disse, enquanto eu estava com a boca
cheia de tortinhas de requeijão. O Lufe falava e falava e falava e eu só
conseguia prestar atenção nas tortinhas. É uma espécie de pastel de belém, só
que mil e duzentas e quatro vezes melhor. Ela é quente e salgada, feita com
massa folhada (folhas de massa de croissant,
tipo francês, feita na manteiga, de verdade, não aquela massa de merda que é
vendida por aí nas padocas, que estufa a pança, parece que você comeu um
dinossauro. O segredo do croissant está na massa, que deve ser semifolhada. A
massa semifolhada possui menos gorduras, menos dobras e leva fermento
biológico. As dobras são responsáveis pela separação da massa e das camadas de
gordura que proporcionam a "folhagem" do croissant...) e cream
cheese. Às vezes, a Dona Yolanda, dona da confeitaria, ainda faz uma mistura,
junto com o cream cheese, de manjericão e pimenta rosa: é sensacional. Mas ela
é de lua, como nós, e não é todo dia que tem a tortinha com esse creminho de
manjericão. A de hoje veio normal, só cream cheese, o que já é fantástico por
si só. Mas veja só, o Lufus ainda fala.
- ...daí ela sai todo pomposa
achando que a ralé aqui vai resolver o pepino dela. Ô, Linhares, cê tá me
ouvindo, porra?
- Uhum... (um bom croissant deve ter
um bom aspecto, como uma lua em quarto crescente, com uma crosta crocante e uma
bela cor dourada. As pontas devem estar descoladas do meio, e o miolo deve ser
alvo, aerado, e mostrar a consistência certa...)
- Porra, Linhaça, sempre que eu te
trago essas tortinhas você entra nesse mundo paralelo. Daí não dá pra gente
conversá! Eu fico falando sozinho que nem um bobo!
- Uhum.... (os defeitos mais comuns,
que são os de padoca, são ser engordurado pelo uso de manteiga ruim; massa com
sabor muito doce por utilizar muito açúcar pra mascarar ingredientes medíocres;
cor sem uniformidade, por defeito do forno...)
- LINHARES!
- Quê, cacete?
- Tá me ouvindo agora?
- Eu tô sempre te ouvindo, bonitão,
hehe.
- Então, presta a atenção. Eu tava
falando da moça que saiu daqui, o que rolou com ela, sem estética da gracinha,
hein!?
- Fechei em cinco mil o trabalho, ou
a primeira parte dele...
- Cacete! Grana boa.
- Pois é, mas ela não gostou muito e...
- Safada! Gran-fina e no mínimo querendo
desconto! Deve ter pedido pra parcelá e essas coisas não é mesmo? Esse ricaços
são todos iguais, um bando de salafrários! Quero ver a hora que...
-... fechamos em oito mil.
-... não tiver mais ninguém pra
defendê esses pilant... O quê? Oito mil mangos? Porra, Linhaça, às vezes você
me surpreende.
- É isso que eu tô te falando, oito
pau o trabalho. Mas temos de começar já.
- Póde crê, maninho. Vâmo já!
- Vâmo carregá o Inércia e vâmo
embora.
- Ela me falou de um cara no Alto
Uberaba, um tal de Florestano Boaventura, um escritor de contos sinistros, que
pode nos ajudar.
- Putz, não é um desses caras que
você fica lendo, é?
- Não é só isso, ele é o maior
escritor de contos pulp que eu já li. O cara é phóda!
- Tá, tá, não preciso ouvir isso.
Vâmo duma vez. Cê sabe que eu acho uma merda esses papinhos de lobisomen,
vampiro, chupa-cabras, isso é tudo merda!
- Ok, mas vamos ter de conhecer o
cara e ver o que ele sabe.
- Você sabe onde ele mora?
- Sei. Fica na floresta do Alto
Uberaba.
- Então vâmo duma vez que eu não
tenho saco pressas coisas. Quero sabê é da matança, hehe.
Lufus levantou, catou suas coisas e
já foi saindo. Eu carreguei a Jéssica e ainda peguei mais umas tortinhas pra ir
comendo no caminho. Até o Alto Uberaba vamos levar uns trinta minutos e dá pra
comer mais umas duas tortinhas.
Montamos no Inércia e saímos. A
chuva deve ter transformado o Uberaba e as adjacências num pântano. Catei os
dois pares de botinas e levei junto; mais o café, cigarros, e toda a
parafernália para sobreviver um dia longe da civilização. O Lufus já tinha
preparado a viatura.
- Linhaça, só não vai ficar pagando
pau pro cara, né? A gente tem um servicinho pra fazê.
- Ta bom, Lufus. A coisa será
rápida. Só preciso perguntar pra ele se ele sabe do que tá rolando.
- Certo. Vambora.
Cinqüenta minutos depois estávamos
na frente do casebre do Boaventura. Não avisamos que viríamos, então, fui bem
cauteloso. Uma casa de madeira bem simples no meio do mato. Realmente, o lugar
repleto de árvores, na sua maioria pinheiros, dá um tom sinistro ao lugar.
Chegamos no final do dia. O sol já estava indo embora. A chuva parou e deixou
um céu limpo e repleto de estrelas. Lua cheia, o lugar está claro. Dá pra ver a
casa por detrás de umas árvores.
- Então, Lufe? Vâmo junto ou
separado?
- Tsca, Linhares, você vai ficar de
papinho com o cara. Eu vou ficar no carro curtindo um Derruba Delinqüente. Se
precisar de mim dá um grito que eu vou em teu socorro, minha princesa, hihihi.
Bateu a porta do carro e ficou lá
curtindo a fitinha. Tudo bem. O negócio aqui, pelo jeito, será bem rápido. O
Lufus não notou, mas de baixo do meu capote eu levei umas revistas pro
Florestano dar uns autógrafos. Se o Lufus fica sabendo disso vai tirar sarro de
mim por uns trezentos anos. Fui chegando devagar. Não queria assustar o
velhote. Toquei a campainha.
- A porta está aberta! Pode entrar!
Espere-me na sala que eu já vou!
Disse uma voz meio velha, mas suave e forte. Típica de indivíduos que tem
precisão no que dizem e fazem.
- Que escuridão da porra! O que aconteceu? Não pagou a conta?
Quis fazer uma brincadeirinha, estética da gracinha, pra ver se quebrava
um pouco o clima formal da conversa.
- Caiu a maldita chave da luz! Estou terminando de consertar aqui atrás e
já chego aí. Estou com problemas desde a última noite de chuvarada.
- Florestano. Seu nome é este, né? Florestano Boaventura. Escritor
daquela revista de contos sujos. Eu conheço! Adorei aquela história da seita
dos Basiliscos. Genial! Tenho várias revistas deste tipo. Coleciono. Conhece a
X9?
- Este conto não é meu! Mas é muito bom mesmo. Pode ficar a vontade
detetive, tem café quente na térmica, se desejar. Aceita um charuto? Têm uma
caixa aí na mesa.
- Claro! Vou aceitar um charuto então. Humm, cheirosos! São cubanos?
Estas chuvas tem feito um estrago na cidade né? Quer ajuda? Entendo um pouco
destas coisas, já fui eletricista. Sabe como é, nessa vida a gente tem de se
virar, né? Aliás, deixe eu me apresentar. Meu nome é Detetive Linhares, mas
pode chamar só de Linhares.
- Estão investigando o que, detetive? Algum maníaco a solta no bairro? O
Uberaba está cada vez pior. O crack está violento por aqui. Esta droga é o
diabo! Os caras andam feito zumbis. Né, não? Ontem mesmo teve tiroteio ali pro
lado do canal Belém.
A coisa já estava começando a ficar estranha. A voz do Florestano não
estava no mesmo tom de quando eu cheguei. Ele já devia suspeitar do que
estávamos querendo. Não viemos aqui pra pedir autógrafos e acho que esse
velhote sabe de alguma coisa e está se preparando pra algo pior.
- Ué, parece que agora escutei sua voz de outro lado. Onde você está
afinal? Estamos atrás de coisa pior, encontraram corpos humanos retalhados aqui
na área. Parece coisa de uma fera ou chupa-cabras. Bestial o negócio! Você não
iria querer ver. Bem, ou gostaria. Afinal seus contos tratam disso, não é?
Soube de alguma coisa? Os vizinhos comentaram algo? Você mora há quanto tempo
aqui?
Umas plantas estranhas espalhadas pela sala; quadros esquisitos; algumas
marcas de arranhões pelas paredes e na porta de entrada; uma luz sombria. Esse
lugar está me cheirando confusão. Acho que esse Boaventura deve saber bem mais
do que estamos conversando, ou deve estar envolvido em alguma merda grande.
Seus contos são bons demais pra quem vive isolado nesse matagal. Ele deve viver
seus contos e depois vem pra cá pra escrever. Acho que vou ter de entrar nesse
quarto e ver o que essa cara está fazendo. Saquei a Jéssica. Dei dois passos em
direção ao quarto escuro. Balela essa historinha de consertar a luz, esse cara
tem culpa no cartório. Devagar fui avançando. Do escuro uma fera feito um lobo rompeu
para a luz num salto.
- Merda!
Não tive tempo de reagir. O cara, ou aquela besta, me catou pelo pescoço
e me colou no teto da casa. Ele devia ter uns dois metros de altura e a força
de trinta homens. A boca guardava dentes pontiagudos e bestiais. Os olhos
brilhavam um vermelho rubi: olhos de lobo. Cacete, eu estava com as costas
pregadas no teto da casa do Florestano e o cara é um lobisomen. Eu leio muito
sobre isso mas nunca me imaginei sendo apresentado a um desses bichos dessa
forma. Eu não conseguia falar. O safado estava me esganando e o mundo já tinha
começado a girar.
- Escute o que tenho a dizer, detetive. Se quisesse te ferrar já teria o
feito quando pisou aqui dentro. Dez segundos eu precisaria para transformar
você e seu colega balofo em comida de lobisomem. Se eu poupei-os é porque quero
ajudar. Portanto, fique bem calminho e continue a fumar o charuto enquanto eu
falo. Não adianta olhar para sua pistola, ela não será útil aqui.
Merda! O cara me arremessou no sofá. Caí feito desenho animado. Fiquei
meio tonto pela falta de ar. Esfreguei os olhos. O lobo estava vindo em minha
direção. Fiquei parado. Ele pegou o charuto que estava no chão e me levou até a
boca. Reacendeu a brasa. Passei a mão no pescoço. Ele poderia ter me matado só
com o susto, mas não quis. Acho que ele está falando a verdade. Vou ouvir o que
ele tem a dizer. Na verdade, essa é a minha única opção. Visto que o cara é um
lobisomem e eu, apenas eu.
- Vocês estão certos quanto aos ataques. Há uma besta agindo lá fora. Mas
não tenho nada a ver com isso. Como pode ver, consegui dominar a fera. Praga
maldita. Tive que me adaptar. O lado selvagem é sádico. Escrever foi minha
redenção. Desenvolver o lado racional inibe a condição. Foi difícil no começo.
Você não imagina quanto. Levei alguns anos para chegar nisso. A criatura que
vocês procuram está no mesmo processo. Existem muitos por aí. Em todos os
bairros. Sabe como é, quando estamos em temporada de aprendizado saímos
mordendo todo mundo. O instinto domina. São apenas corpos em movimento na
escuridão. Somos guiados pelo cheiro.
Recuperei o fôlego. Eu acreditei no que ele estava falando. Quero ver
convencer o Lufus que existem mais lobos correndo por aí e atacando pessoas em
noites de lua cheia.
- Precisamos deter esta fera. Ou ela fará mais vítimas. E outra, temos
que fazer isso antes que a notícia chegue nos ouvidos dos jornalistas. Como
posso confiar em você? E se estiver mentindo? Terei que investigar a sua casa!
- Você não está em condições de impor alguma coisa, detetive...
Tiros do lado de fora. Pelo barulho: calibres 38 cuspindo em alta
velocidade. Lufus! Olhamos pela janela e vimos o Fúlvio de pé, com a porta do
carro aberta atirando em direção ao breu. Corremos na mesma hora para ajudá-lo.
- Ei, Detetive. Tem outra coisa. Essas tuas balinhas não fazem nem
cócegas em nós. Pegue
isso aqui. Você vai precisar disso.
Florestano me entregou algumas balas de prata. Preenchi o carregador.
- Valeu, man.
Saímos correndo da casa. Encontrei o Lufus caído no chão, com o pescoço
todo estourado. Um lobo se alimentava da carne do Lufe. Florestano saiu do meio
do matagal numa velocidade assustadora e voou sobre o outro lobo. Começaram um
combate muito voraz. Eu fui até o Lufus para ver se ele ainda estava vivo.
- Lufus! Fala comigo, meu velho!
- Ããã...Linha...
Ele estava fraco e não conseguia falar direito. Seja lá o que for o que o
bicho fez com ele, não estourou de fato o pescoço. Foi uma mordida, mas pelo
rasgo o Lufe deve ter se segurado e dado uns tiros nele.
- Não atravessou a garganta, nem chegou nas cordas vocais. Você ainda vai
ter muito tempo pra falar besteiras, Lufe. Fica tranqüilo. Eu tenho um
negocinho pra fazer agora.
Peguei a Jéssica e fui em direção ao mato. Um lobo de pelagem ruiva
estava em cima do Boaventura com a bocarra pronta pra arrebentar a sua cara.
Ele tentava segurar a boca do lobo ruivo com as mãos. Parecia querer
estourá-la.
- Mas esse serviço de estourar as coisas é meu!
Um tiro de prata no meio do peito. Teria esvaziado a Jéssica, mas talvez
eu ainda precise dessas balas hoje. O monstro agonizou por alguns segundos e
morreu aos nossos olhos. Todo lobisomem, depois que morre, volta a sua forma
humana. Sinistro o que estava acontecendo ali. Só conhecia essas coisas pelas
revistas e contos. Boaventura se levantou. Ele parecia um ser humano normal.
Agia como se fosse um, apesar da sua forma de lobo.
- Como está seu colega? Ainda vive?
- Sim, mas acho que a maldição o tocou.
- Vamos levá-lo para minha casa. Te ajudarei com os curativos.
- Ele vai virar isso... que você é? Digo...
- Só na próxima lua cheia. Arraste-o para dentro. Darei um jeito no
cadáver.
Levei Lufus para dentro da casa de Florestano. Ele ficou ali mais um
tempo. Provavelmente, vai se alimentar do corpo daquele homem. Observei por um
tempo. Interessante, eu diria. Ele não deixou um pedaço de corpo sequer. Limpou
a área como diria um detetive de primeira. Gostei desse cara.
- Deixar rastros é coisa de amador.
(continua)
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