terça-feira, 6 de março de 2012

Investigação no Boqueirão, quarta parte

Flor de Acônito

A JAULA

            Levei o Lopes pra dentro da casa como havia mandado o Florestano. Coloquei-o sobre a mesa da sala. Catei um pano de prato que havia por ali e enrolei no pescoço dele. Tateei pelo escuro e encontrei algumas velas em um gaveta sob a pia. Acendi e levei até a mesa. O pescoço do Lufe estava ficando com um aspecto medonho. O Boaventura tinha de jantar rápido. Procurei por algum remédio, algo que pudesse aliviar a sua dor, e nada. Olhando a sala donde eu estava, aquilo mais parecia filme de Franckenstein: o cara estrupiado na mesa, o quarto semi-iluminado, sangue pra cacete nas paredes, no chão e na porta, fora as marcas de lobo por todos os lados. Realmente eu estava em um lugar, como diria o Lufe, “beeeem estranho”. Barulhos do lado de fora. Boaventura entrou pela porta.
            - Rápido! Venha comigo aqui fora.
            Sem questionar fui atrás do Boaventura. Ele me levou até um jardim atrás da casa.
            - Está vendo essa planta?
            - Sim.
            - Pegue umas vinte folhas dela enquanto preparo o fogão lá dentro.
            - O que é isso?
            - É Acônito. Depois te explico.
Respeitei a sua pressa. O Lufus não tinha muito tempo. Arranquei a quantidade de folhas que ele me pediu. O acônito (Aconitum napellus) é uma planta venenosa utilizada em medicamentos homeopáticos. Possui o caule ereto, com flores azuis na forma de um elmo. Apenas 10 gramas constituem uma dose letal para o ser humano. É uma planta vivaz que pode atingir até 1,5 metros de altura, tem folhas verde-escuras, palmeadas e recortadas, flores azuis. É medicinal e costuma cultivar-se também em jardins como planta ornamental. Muito bela a planta, e com um aroma doce e amargo ao mesmo tempo. Levei as folhas para dentro. O Boaventura já preparava panos, água quente, e mais uns apetrechos.
- Pegue esta cumbuca de madeira e moa todas as folhas juntas. Depois ferva o que restou das folhas. A seiva você recolhe neste outro pote e passa aqui pra mim.
            Ele tinha urgência. Comecei a ficar preocupado de verdade, algo que raramente acontece. O Lufus já estava alucinando e não parava de chamar pela Marcela.
            - Porra, Lufe. Até aqui você ainda pensa na Marcela.
            - Quem é Marcela?
Perguntou o Florestano, num tom mais ameno, o que quer dizer que acho que a coisa vai dar certo.
- Uma namoradinha do Lufe. Ele é apaixonado por ela. Mas ela é garota de programa, então às vezes ele entra em confusão por causa disso.
- E eles não pensam em ficar juntos? Ela sair da vida de programa?
- O problema não é ela. É ele! Ele é detetive, esqueceu? Quem vai querer ficar do lado de um detetive?
- Muito bem observado, Detetive Linhares.
- Ei, man, pode me chamar de Linhares. Não se avexe.
- Hehe, agora estamos ficando íntimos, é isso?
- Sem meninices, Florestano. Mas você salvou o Lufe e eu te salvei, esqueceu?
- Você acha que me salvou.
- Porra, o balaço que eu dei no lobo ruivo foi o quê?
- Eu quis te dar a chance de pensar que pode mais, saca?
- Haha, você é engraçado, man.
Estávamos virando amigos do lobo. Não sei se isso é bom ou ruim, mas eu ainda vou querer saber sobre os assassinatos no Boqueirão. Agora tenho certeza de que o Boaventura sabe de muitas coisas que acontecem por aqui.
Enquanto conversávamos, o Boaventura fez o curativo no Lufus e preparou um chá. O Lufe bebeu, não sem dificuldades, o chá, e apagou.
- Vamos leva-lo para o quarto do fundo. Lá tem uma jaula de proteção que eu usava quando não dominava a transformação.
- O que você quer dizer?
- Ele vai se transformar na próxima lua cheia. Mas até lá algumas coisas que você pode achar estranhas vão acontecer, e é melhor ele estar contido na jaula. Ele vai se tornar bastante agressivo durante esse tempo. Temos que cuidar pra que ele não saia daqui.
- Mais agressivo do que ele já é?
- Você ainda não viu nada, Linhares.
Cacete! Eu não conseguia imaginar o que poderia acontecer com o Lopes até o dia da sua primeira transformação, mas eu tinha de confiar no Florestano. Nesse momento ele era o único que poderia salvar a pele do grandão.
O Fúlvio adormeceu. Voltamos para a sala. O Florestano preparou um café para nós.
- Nunca tomei café de lobisomem. Cacete! Que noite lazarenta! Achei que aquela besta ia nos matar. Você foi muito rápido. Ainda bem que estava por perto.
- Quem acertou-lhe o tiro foi você! Não me sinto bem fazendo isso. É como matar um irmão. Porém, fizemos realmente a coisa certa. Gosta de café forte? Você vai ter que tomar cuidado com seu parceiro agora. Ele se transformará na próxima lua cheia, você sabe.
- Não entendo muito desse assunto. Precisarei da sua ajuda. Onde você arruma balas de prata? Acho melhor trazer Fúlvio para passar as noites aqui no próximo mês. Você construiu esta jaula para isso, não é? Quanto tempo demorou até controlar a fera?
- Muitas perguntas, Detetive. Vou te emprestar um livro. Pelo menos te dará uma base. Este aqui, escrito por Herberto Sales. Tudo o que aprendi sobre lobisomens está nele. Têm alguns croquis também, olhe. Prometa-me devolvê-lo.
- Ei, man, existem dois tipos de idiotas: os que emprestam e os que devolvem livros.
- Hehe. Boa, Linhares.
Peguei o livro e comecei a folheá-lo. Florestano acendeu um cachimbo. Ficamos na sala relaxando um pouco. O aroma do café se misturou com o do fumo: muito agradável. Contei algumas estórias de perseguições, matanças e outras cositas más. O Florestano parecia interessado em saber detalhes de como resolvíamos nossos casos. Eu propus contar várias estórias, mas desde que ele repassasse uns royalties da vendagem dos contos depois. É claro que ele vai usar isso depois. Não vi problema algum.
Ele se prontificou a ir conosco em nossas caçadas, por causa dos contos. Eu não me importei, e acho que o Lufus também não se importaria. Contei pra ele dos assassinatos no Boqueirão e do nosso contrato com a gran-fina do Batel.
- Não se preocupe com isso. Eu sei quem pegou esses dois. Mas não foi encomenda, nem nada. Apenas fome. Existem mais lobos andando por aí. Eu sou o único que dominou a fera. Mas os outros ainda são animais sedentos por sangue. Não há como controlar isso. O seu “amigo” foi atacado por um lobo de pelagem clara. Não sei quem ele é na vida, mas já cruzamos alguns olhares pela noite. Apesar disso, do crime que você quer resolver, somos irmãos, e fica difícil pra mim querer te ajudar. Você entende?
- Claro. Mas eu preciso achar o cara que destroçou os dois policias.
- Eu vou te ajudar com isso. Mas nem pense em chegar pra tal gran-fina e dizer que foi um lobisomem que atacou os policias. Ela vai rir de você.
- Não tenho certeza disso. Ela deve saber de alguma coisa. Foi ela que me indicou você.
- Humm... Interessante.
Ele parou. Deu uma tragada no cachimbo. Matutou.
- Posso ver uma foto da gran-fina?
- Não tenho aqui, mas posso arranjá-la. Porque?
- Apenas uma suspeita.
- Ela disse que coordena duas empresas do pai.
- Me mostre uma foto dela e eu te ajudarei com o caso. Agora precisamos cuidar do seu amigo.
Li mais algumas páginas do livro sobre lobos e acabei adormecendo no sofá. Acordei com o Lufus berrando no quarto dos fundos. Fui até lá.
- Aaaahhhh!!!
- Cacete! Lufus, o que tá acontecendo?
- Me tira daqui Linhares!! Anda!! Abre essa porra de jaula antes que eu te mate!!
Ele estava fora de controle. O ferimento do pescoço sangrava. Ele estava espumando feito um animal raivoso.
- Safado! O que o Florestano fez? Isso deve ser culpa dele!
Fui para a frente da casa ver se o Florestano estava por lá. Ele havia acabado de chegar e estava sujo de sangue. Saquei a Jéssica e apontei para ele. Eu não exitaria em descarregá-la.
- Onde você estava, lobo filho da puta? Tem sangue em seu casaco! Quem você matou? Vou te meter uma bala de prata na sua boca! O que é isso que você passou no pescoço de meu amigo? Algum tipo de poção maligna? E tinha algo no café que preparou também? Você me esperou dormir para matar alguém aí fora!
- Você está enganado, detetive. Não tire conclusões precipitadas, disse entrando em casa e limpando a boca com as patas. Você está adentrando num mundo que ainda não conhece. Saí para resolver problemas pessoais. Agora baixe esta arma, porque preciso preparar o chá. Quanto mais tempo demorarmos, será pior para ele. Você tem que confiar em mim.
Merda! Ele tinha razão. Me deixei levar pela emoção. Eu precisava confiar nele.
- Eu acho bom mesmo que ele melhore.
Preparamos o chá e mais um pouco da pasta para o pescoço. Levamos até o Lufus. Ele estava menos raivoso, mas ainda babava muito e tinha o olhar animalesco. Nos olhava com raiva. Florestano se aproximou com o chá. Os dois se olharam. Lufus se acalmou. Como diz o ditado: “boi preto conhece boi preto”. O Fúlvio suava muito, mas a temperatura foi baixando. Ele bebeu e adormeceu. Trocamos o curativo.
- A primeira semana não é fácil.
- Vamos ter de esperar?
- Paciência, Detetive, paciência.
- Ok. Esperaremos.
- Não se preocupe. Depois, fica tudo mais divertido.

(continua)

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