segunda-feira, 9 de abril de 2012

Breve Obituário Cotidiano



2

            - Acorda aê, vagabundo!
            - Éé, acorda que nóis têmo que trocá uma idéia!
Antes de eu abrir os olhos já havia dois caras em cima de mim. Fingi que estava dormindo e um deles fez o favor de me dar uma baldada de água fria.
            - Filho da p...
            - O que foi que você falou, Detetive?
O safado meteu o revólver na minha fuça. Eu sei quando não estou ganhando o jogo.
            - Você já pode tirá esse negócio do meu nariz. Já entendi.
“Acho que a coisa está feia pro seu lado. Quer uma ajudinha?”
O Diabo saiu da cozinha com uma xícara de café e sentou-se na minha cadeira com os pés em cima da mesa.
            - Dá pra tirá a porra do pé de cima da mesa!
            - Que foi que você disse, Detetive?
            - Aceitam café?
            - Mas é craro. Pega lá Trôxa.
            - Pega você, Bósta.
            - Eu não. Da última vez foi eu quem pegô.
            - E daí. Lá no China eu que segurei o cara procê dá uns tapa. Pega lá!
            - Ããã... é verdade. Tá bom...
            - Treis gotinha, hein?
É nessas horas que eu pago cinqüenta reais pra ver a minha cara de bobo enquanto esses idiotas discutem. É sempre assim. Os chefões do crime (des)organizado deviam recrutar seus capangas em universidades e não nas ruas.
“O adoçante acabou, Detetive.”
“Pois é... talvez eles ainda briguem e quebrem alguma coisa aqui dentro”
“É sempre assim...”
O Bósta era quase do tamanho da porta: gordo, de voz mansa, grave e mocoronga, olhos baixos e caídos nas extremidades, quase não dava pra ver as bolinhas dentro da cabeça. Nariz pequenininho, quase nenhum dente na boca... uma espécie de versão PULP/NOIR do Slot, só que de bermuda e camiseta.
Já o Trôxa dá pra saber só pelo jeito que ele fala. Todo malandro, mulequinho, cheio de ser o bom da boca. Tem a fala fina e rápida. É pequeno e rápido nos movimentos. Tem os olhos grandes e redondos, o nariz fininho, tipo chefe de cozinha francês. Camisa de gola italiana com blazer, calça de linho, sapatos bem lustrados. Ele jura que é uma imitação perfeita do seu chefe... uma espécie de versão abobalhada dos Irmãos Cara-de-pau.
            - Ééé... é sempre assim...
            - Sempre o que, Detetive?
            - Então, os dois já têm o que querem?
            - Ããã... Trôxaaa, não encontro o adoçante de gotinha...
            - Estou sem no momento. Parece que o Diabo tomou tudo.
            - Põe açúcar, então, Bósta.
            - Quanto eu tenho que pôr, Trôxa?
O Diabo ri. Aliás, o Diabo só ri nessa história.
            - Xicrinha ou caneca?
            - Caneca.
            - Duas colher tá bom. Então, Detetive Linhares, tâmo querendo sabê da tal mulhé que veio aqui ontem.
            - Hoje já é amanhã?
            - Do que cê tá falando, Detetive?
            - Acho que dormi demais e tô tendo um pesadelo.
De uma hora pra outra eu me toquei que eu estava acuado dentro do meu próprio escritório; que devia ser umas dez da manhã; que a Jéssica estava dentro da gaveta; e que os safados estavam acabando com o meu estoque de café. Fiquei puto.
            - Olha lá, Trôxa, o Bósta tá tomando todo o café. Você vai ficar sem, hein...
            - Que...
Ele virou pra trás para olhar. Caiu no truque mais velho do mundo. Nem a piazada da quarta série cai mais nesse truque. Catei o Trôxa numa gravata e, enquanto isso, o Diabo que não é bobo me arremessou a Jéssica.
CLÉC!
Em menos de um milésimo de segundo eu tinha a minha pistolinha .45 de estimação enfiada na nuca do nanico.
Falei bem baixinho no ouvidinho do rato de esgoto.
            - Avisa teu amigo que é pra ele vir sentar aqui e não bancar o amigo-que salva-todo-mundo-no-final-do-filme, senão, a empresa de lixo vai catá os pedacinho de vocês dois daqui até o inferno. É ou não é?
            - É o que, Detetive?
            - Cala a boca! Não falei com você!
O Diabo matou o último gole de café. Levantou e saiu pela porta. Lá do fundo deu um aceno.
            - Avisa o teu amigo.
            - Tá bom, Detetive, tá bom, peraê... Ééé... Bóstinha querido, você pode vir aqui na sala com bastante calma, por favor?
Ele botou a cabeçona na porta e se assustou. Tadinho.
            - Ããã!? Que é isso?! Larga ele, Detetive idiota! Vô acabá com você!!!
Ele sacou um revólver de dentro da bermuda. O Trôxa entrou em pânico.
            - Nããããoooo!!!!! Ele vai matá nóis dois!!! Não faz isso, Bóstaaa!!!
            - Ããã, porque não?
            - Se acalme, queridinho, se acalme... tá tudo bem, o Detetive é amigo e não vai fazê nada se você não fizé também... calminha aê amigão...
O Bósta parou na porta com a arma apontada pra mim.
            - Põe esse revólver de volta no lugar e senta bem aí aonde você tá, que hoje, o Detetive Linhares não tá afim de matá ninguém, ok bonitão?
“Demais essa frase. Às vezes, eu me sinto o próprio Billy, the Kid. Fico imaginando o que ele faria numa situação como essa, o jeitão dele, sabe? Tem dias que eu fico treinando o jeito que ele olharia prum safado como esse, e que texto ele daria pro cretino. É uma coisa meio James Jean, meio farwest, meio eu mesmo, tá ligado, porque quando eu era criança eu ficava excitado com aquelas cenas românticas dos filmes de cowboys: o sol se pondo, dois caras prontos pra estourá os miolos um do outro, o gatilho mais rápido do oeste, a coisa toda, sabe o que eu tô dizendo? É um troço meio filme de samurai, não sei explicá direito, Kurosawa e coisa e tal, mangá, quadrinhos, Tarantino, não sei dizê, mas é uma sensação muito louca. Ficava imaginando aquele último trago no cigarro, a bituca arremessada pro lado, o cara que dá o último gole na cachaça e bate o copo no balcão, as frases de impacto ditas de um jeito meio canastrão... Hehe, é isso aí, coisa de machão mesmo... já tô até ouvindo a trilha... “rain drops keep falling on my head” com o Paul Newman passeando de bicicleta com a Katharine Ross... eu fico emocionado…”
            - Ô Trôxa, o Detetive tá triste...
            - Êêêê, qualé Bósta?! Tá tirando sarro de mim?
            - Não, seu Detetive, não é isso, é que teu olho tá cheio de...
            - Tá, tá, tá, tá, já me cansei dessa lenga-lenga. Vô matá os dois e pronto.
            - Que?
POW!
O tiro atravessou a nuca do Trôxa e parou dentro da cabeçona do Bósta. Enrolei toda a merda que vazou pela sala e pela cozinha em sacos de lixo e esperei o Diabo chegar pra dar um jeito nos corpos. Fui tomar um banho. Na volta os corpos não estavam mais na sala, apenas um papel em cima da mesa com um telefone anotado. Liguei. Atendeu uma voz feminina.
            - Nono Distrito.
O Diabo riu.
Essa era a dica.

(continua)

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