segunda-feira, 30 de abril de 2012

Indiana



- Sabe o que eu acho mais legal, Detetive?
- Humm?
- Ficar olhando vocês polindo essas armas, e cuidando de tudo bem certinho…
- Mais ou menos.
- Mais ou menos o que?
- Nao é tão certinho assim.
- Tá, mas é legal.

silêncio

- Posso te ajudar?
- Pode. Pega um pano pra você ali na gaveta do armário da cozinha.
- Tá. E agora?
- Isso aí é o carregador. Ele serve pra você colocar os cartuchos dentro, encaixado assim, olha só.
- Humm…
- Só que precisa tá bem limpo, senão essa porra emperra e aí é bem capaz que você se ferre. Então, pega um oleozinho e vai de leve polindo, deixando bem azeitadinha e depois deixa de pé na pia pra escorrer e deixar o óleo agir engraçado como ela gosta disso que depois vou te ensinar a desmontar uma arma em primeiro escalão.

Passamos a manhã inteira limpando a Jéssica. Os trabalhos nos últimos meses tinham melhorado e eu e o Lufus acabamos precisando contratar um estagiário pra cuidar das coisas de telefone e agenda, essas coisas chatas que os estagiários são mal pagos pra fazer. Só que com a gente acabou sendo um pouquinho diferente, porque na real não precisávamos de estagiário pra nada. Essa aí é uma menina novinha, acho que tem uns quatorze ou quinze anos, não sei direito. Não pergunto e ela também não fala, então estamos bem assim. Cão que ladra não morde, tá lembrado? Ela é filha de uma das prostitutas que zanzam…, que zanzavam pelo Gato Preto e adjacências, e que viu a mãe ser rasgada por um punhal e depois levar seis tiros, isso tudo logo após uma discussão com o namorado por causa de umas pedras de crack e de dez reais de um programa, que segundo a menina, ela nem tinha recebido, porque tinha levado o calote de um taxista que comeu a mulher no carro e chutou-a pra fora logo em seguida, ou seja, a noite daquelas pessoas tinha sido uma merda e o namoradão ainda quis tirar o que ela não tinha. Que maravilha. Eles estavam de parabéns é deprimente o ponto em que podemos chegar.

O problema é que a menina estava em casa. Tinha recém chegado da casa da avó que mora em Joinville. Segundo ela, tinha vindo fazer uma visita pra mãe e ver como as coisas estavam. A avó estava preocupada com a filha e mandou a neta saber da filha, saber as novas, porque desde que a mulher tinha arranjado um emprego de secretária de um alto executivo que ela não tinha mais ligado pra família. Acabei descobrindo depois que o alto executivo era o Nelsinho, o gigolô mais safado das redondezas. Um cretino que eu já tive com o gogó nas mãos, mas que conseguiu escapar graças a uma de suas funcionárias que me passou a navalha nas costas bem na hora que ia fazer os olhos dele explodir. O talho foi grande mas teve conserto. O negócio é que o cara é bom e a mulherada confia nele. O esquema funciona bem pro lado do Nelsinho. Ele é metido com qualquer coisa que dê dinheiro sem se mexer muito, tipo explorar mulheres e crianças, traficar umas pedras entre os zumbis do centro, roubar uns manés que insistem em trafegar pelas encruzilhadas de madrugada, explorar geral, essas típicas coisas que todo bon vivant gosta de fazer. E o povo das redondezas da Catedral parece gostar do nosso Nelsinho. Muito estranho isso, não é verdade?

E agora estamos cuidando da menina até o Serviço Social achar uma família pra ela, porque a avó teve um piripaque quando soube da morte da filha e não resistiu. Dizem que foi pro céu. Parece que era a única referência da menina e eu topei dar uma assistência até conseguirem achar um parente ou um lugar pra ela ficar. A guria ficou jurada pelo Nelsinho. No segundo tiro ela se desesperou e foi pra cima do cara. Ele virou a mão na boca dela e nisso ela capotou pra trás com o baque da pancada, bateu no parapeito da janela, e caiu pro lado de fora. Sorte que era térreo e ela não quebrou nada. Deu tempo ainda dela sair correndo pra pedir ajuda, mas como eu falei, o centro é do Nelsinho, nessa hora ninguém quis dar uma força pra guria, e ela acabou no Distrito pedindo ajuda, o que é muito pior, porque ali tem meia dúzia de canas comprados, mas ainda bem que ela acabou caindo nas mãos do Tavares, que estava de plantão. Ele já sacou na hora a cagada e me ligou pedindo preu dar uma força. E agora estamos aqui, eu e a Cynthia, limpando a Jéssica, enquanto o Fúlvio…o Fúlvio… sei lá do Fúlvio, deve estar com a Mamá em algum buraco do Parque Barigui dando umas uivadas pra lua cheia.
hehe que massa

- Você tem que mudar esse nome!
- Porque?
- Cynthia? Com Y e TH… sei não…
- Que que tem? Minha mãe que deu. Por causa da...
- Daquela mulher da novela.
- É. E eu acho legal. Todo mundo acha. 
- Esse é o problema todo mundo pode te achar. A partir de agora você vai se chamar, Janis.
- Porque, Janis? Esse nome é bizarro, Detetive. Imagina as minhas amigas me chamando na rua…

Ok. Fiquei puto. Não estava muito afim de ficar puto já de manhã, mas é que certas coisas só são entendidas em decibéis mais poderosos.

- Se liga numa coisa, guria, você não vai mais pisar na rua, você não tem mais amigas! Não se ligou disso ainda? Porra! Se você descer na rua XV e botar teu pezinho 34 na calçada vem um cara e te estufa, então você não sai mais sozinha.

- Nada a vê.
- Como assim “nada a vê”, caralho!? Tudo a “vê”!
- Nada a vê! Nem você, nem aquele policial negão e gordo vão me dizer o que eu devo fazê!
- Ok
- Sem showzinho man. 
- Ok. Vamos resolver isso na boa saco.

A Jéssi tem razão. Preciso ficar tranqüilo senão faço merda. Baixei o tom e fui na boa com a menina.
    
- Primeiro, você precisa de um outro nome porque o Nelsinho vai vir atrás de você. Segundo, já deve ter gente te procurando, porque voce é testemunha ocular do crime. E terceiro, faz tempo que eu tô na cola do Nelsinho e você é um excelente motivo preu acertar as contas com ele. Pode ser?

Ela fez cara de birra, fez beiço, girou na cadeira, levantou e foi até a janela. Ficou um tempo ali sem falar nada. Seus olhos estavam vidrados. Acho que tinha sacado o que havia acontecido. Estava sozinha e as únicas pessoas que estavam dando atenção pra ela eram três detetives toscos que mal sabem cuidar da própria vida. Mas é o que ela tem pro momento, e se quiser continuar viva vai ter de aceitar.
Deixei-a ali mais um tempo em silêncio e continuei dando atenção a Jéssica. Não queria atrapalhar seus pensamentos. Pensamentos são coisas que não devem ser atrapalhadas, principalmente quando eles estão te dizendo que tua mãe morreu na tua frente e que tua avó teve um ataque fulminante e que o cara ao lado quer mudar seu nome e te esconder numa gaveta ao lado de revistas pulp e

- Tudo bem.
- Tudo bem, o que?
- Mas não vai ser Janis. 
- Porque não?
- Pensa numa outra coisa. Janis parece nome de cadela.
hehe ela é uma guria legal
- Que tal, Indiana?
- Com I ou com Y?
- Com I, né! Que mania que vocês têm de botar Y no lugar de I! Caralho! Fico imaginando Jéssica com Y. Você já imaginou, beibes? Teu nome com Y?
- Já, man. E te mataria se você fizesse isso. É bizarro. Ia ficar tipo JESSAICA!
- Hahahaha
- Com quem você tá falando?
- Ninguém. Olha só, então fazemos assim, deixamos teu nome com Y, mas tem de ser Indiana. Pode ser?
- E daí eu vou ter um apelido tipo assim, Indy?
- Of course, Indiana.

Rimos. Estávamos nos divertindo pela primeira vez desde que ela chegou no escritório. Acho que ela pelo menos está gostando de estar ali, viva. De fato, acho que ela queria viver.

- Mas é o seguinte, vai ser Indiana e Indy, ok?
- Tá, pode ser, acho que Indy vai ser legal.
- Tá com fome?
- Nossa, muita, nem me liguei que não como nada desde ontem.
- Então vamos descer ali no Bar do Tony. Ele vai ajudar a cuidar de você. Ele é mais um em quem você vai poder confiar. Você vai gostar. Ele é um cara legal e faz o melhor rango da cidade.
- Massa, Linhares!

Ela me abraçou. Demonstraçoes de afeto nesse ramo são coisas meio inóspitas e impróprias, mas eu aceitei o abraço e descemos. Ela vai ter de aprender algumas coisas pra se defender sozinha.

(esse conto ainda não tem continuação, porque ele é hoje de manhã)

Um comentário:

  1. Gostei man! Indy padawan de detetive! Gostei da forma deste conto, sem tantas vozes (e com menos itálicos) ficou mais limpo e fluiu muito bem!! E com o Linhaça narrando em 1ª pessoa. Escreve a continuação e agita a vida dessa guria! Heheheh

    ResponderExcluir