segunda-feira, 2 de abril de 2012

SUJEIRA DA BRABA, parte final



O sangue estava fervendo. Não queria perder essa vibração. Eu sabia que ou a gente agia agora, ou a coisa ia esfriar e daí poderíamos perder tempo com elucubrações. Chegamos no escritório.
- Vô mandá mais uma. Tá afim?
- Não, Linhaça. Valeu. Vâmo pensá nesse Carne.
- Ok.
- O cara tá subindo amanhã com a parada. Ele deve vir em diferentes carros.
- Não sei nem se ele está em um desses carros.
- Como ele é?
- 45 anos. Grisalho. Usa óculos. 1,75. 80 quilos.
- Cê acha que...
- Acho que nem foi pra Paranaguá.
- O cara da casa enganou a gente?
- Mais ou menos. Essa festinha foi armada. O Cavêra tá trabalhando pro Carne e mandou a gente lá.
- Filho-da-puta. Da próxima vez têmo que queimá ele inteirinho!
- Esquece o piá. Esse papel tava dentro do bolso do cara da casa.
- Há! Por isso que eu gosto de você, Linhaça.
- Leia.
No papel estava anotado um endereço. Uma rua na Vila Guaíra. Parecia ser o ponto de encontro do Carne com os supostos parceiros do Parolin.
- Se isso estiver certo, é amanhã. Mas não tem horário.
- Vâmo montá guarda nesse endereço e acabá com a porra toda!
- Também acho.
- Vâmo nessa.
Carregamos o Inércia e fomos até o suposto endereço. Passamos na frente. Uma casa de esquina. Azul claro desbotado. Pelo número de janelas deve ter dois quartos, uma sala e uma cozinha. Aparentemente, uma casa de família. Quintal na frente, do lado e atrás. Varal sem roupas. Demos a volta na quadra. Conhecemos a vizinhança. Um bairro de casas normais, que jamais chamariam a atenção da polícia, ou os policiais não gostam de vir aqui. Ou gostam demais! Mas fica próxima de dois pontos de distribuição de drogas: o dos caras, e o do Carne.
- É aqui mesmo, Lufe. Conheço bem esse bairro. Passei a minha infância por aqui. Por esses lados já conheci muita gente metida a traficante.
- A gente podia pegá uma dessas casinhas em volta. Eu vi que tem uma, do outro lado da rua que tá pra alugá.
- Tive uma outra idéia.
- O quê?
- Pode parecer cretino, e acho que é. Mas, aqui nessa região tem uma porrada de carros que vendem sonho, pamonha, essas merdas em geral.
- Hahahaha!!! Genial, man!!! Vâmo montá uma merda dessa e ficá rodando por aqui até pegá os cara!
- É isso aí, Lufe! Vamos vender sonhos!
Rimos por algumas horas da história de vender sonhos. Vez ou outra a gente botava um pozinho pra galera que trabalha na rua em geral, pra conseguir algumas informações, e sempre dizemos entre nós que somos fabricantes de sonhos. Tínhamos um bom pretexto para sermos realmente.
Passamos o começo de manhã armando o esquema. Onze horas começamos a rodar pelo bairro, em direção ao endereço. E como eu sempre achei que tinha nascido com o cu virado pra lua, uma senhora da casa da frente da que estávamos montando o cerco nos parou.
- Bom dia, senhora. Um é setenta e cinco centavos, seis por três reais.
- Olá, meninos. Eu quero seis.
O Lufe não perde o bom humor nunca.
- A senhora trouxe a vasilha?
- Ai, meu Deus. Não é que eu me esqueci. Vou buscar e já volto. O senhor pode ir separando pra mim dois de goiaba, dois de creme e dois de nata.
Enquanto a velha ia pegar a vasilha, o Lufe ia separando os sonhos, e eu fiquei de vigília. Já havia um movimento na casa. Duas crianças corriam pelo quintal. Uma mulher de mais ou menos 40 anos pendurava roupas no varal e um homem, de também 40 anos, estava escorado no muro. Ele entrou e saiu da casa três vezes em menos de quinze minutos. A velha não devia estar achando a vasilha. Ela apareceu.
- Olha, menino. Seu dinheiro.
- Obrigada, minha senhora. Aqui estão seus sonhos.
- Passar bem.
- A senhora também. Fique com Deus.
O Lufus, quando quer, é de tirar o chapéu.
- Fique com Deus?
- Pô, Linhaça, a velhinha merece respeito. Gente boa, ela.
- Eu passei cocaína nos sonhos dela.
- O quê?
- A hora que você entrou pra pegar umas moedas eu derramei um pouco do pó no sonho dela.
- Pra que, caralho? Isso é sujêra da braba, hein?!
- Sei lá! Pra ela ficar com Deus, talvez!
- Você é phóda! A velha vai ter um treco.
- Ou vai ver a luz. Hehe!
Entramos no carro.
- Presta a atenção naquele cara no muro. Ele tá meio cabrêro com alguma coisa.
- Póde crê.
- Vâmo dá mais uma volta.
Um grito veio de trás do carro.
- Ei! Espera aí!
Olhei pelo retrovisor e as duas crianças estavam correndo atrás de nós.
- Que beleza, hein, Linhaça?!
- A gente quer seis sonhos!
- É!! Um de morango, um de chocolate, dois de creme e dois de goiaba.
- Putz! Não tem de morango, nem de chocolate. Tem de nata.
- Áaa....
- Você acabou de decepcionar uma criança, Lufus.
- Fica quieto, Linha!
- Mas pode ser. O pai também gosta de nata.
- Aquele homem no muro é o pai de vocês?
- É.
- Ele tá nervoso?
- Tá.
- Porque?
- O amigo dele tá demorando.
- E que horas ele chega?
- Não sei.
- A nossa mãe disse que a gente vai passeá no shopping depois do almoço.
- Tá aqui o sonho de vocês.
- Brigado.
- Tchau, tio.
- Tchau. Acho que eles gostaram de mim.
- Os caras vão vir de tarde.
- Vâmo dá uma volta, então.
Saímos dar uma volta pra matar um tempo.
- Não me olha com essa cara, man! No das crianças eu não fiz nada, hehe.
Acendi um cigarro. Liguei o toca-fitas.
- Chega dessa merda de vendê sonho. Agora o negócio é outro.
- Volta lá pra casa. Já passô duas horas.
Voltamos. Da quadra de cima já conseguíamos ver dois carros estacionados na frente da casa. Pelo jeito o mané do portão era só um laranja, e os cretinos estavam usando a casa do cara pra despistar a polícia. Na verdade, eu acho que eles querem despistar outros traficantes. A polícia não precisa ser despistada, precisa ser alimentada, e isso, é bem diferente.
- Lufus. Eu vou parar o carro por aqui.
- Você entra pelos fundos dessa vez.
- Feito.
O Lufus foi indo em direção à frente da casa. Estávamos vestindo roupas ridículas e ele não é o tipo do cara que chama a atenção. O Lufe estava parecendo um turista americano. Ele parou no portão. Eu fiquei a vinte metros do muro vendo a movimentação pela janela dos fundos. Eu não conseguia ouvir o que ele estava dizendo, mas devia ser tão ridículo quanto o que eu falei noite passada. O pai das crianças foi até o portão. Conversou com o Lufe da garagem. Quatro caras se dirigiram à cozinha. O Carne era um deles, mais o idiota de ontem.  Mirei a cabeça do safado, mas me controlei. Minhas mãos estavam tremendo. Mandei mais uma do vidrinho. O papo devia estar bom no portão. Comecei a ficar de saco cheio. Um dos caras foi pra fora da casa. Deu pra ouvir o que ele falou.
- Qualé o problema? Que que tá pegando?
Pulei o muro da casa. Outro cara foi até a porta de entrada que fica na garagem. Ficaram o Carne e o safado de ontem na cozinha. O Carne puxou um revólver; o outro tinha uma escopeta na mão. Sacaram que estava rolando alguma coisa. A merda ia começar.
- O Lufus que se vire lá na frente.
Meti o pé na porta. Os dois se assustaram.
BAM!
Um tiro no peito do cara de ontem. Éramos irmãos. É uma pena. Agora, que vença o melhor. O Carne correu pra um dos quartos.
- Merda!
O quarto tinha janela pro lado da casa.
BAM!
BAM!
BAM!
Dois tiros de 38 cano longo. Um de 9 mm Beretta. O Lufe disparou duas vezes.
- Ele vai ter de se virar sozinho.
Corri pelo lado de fora. O Carne tinha pulado a janela e o muro e correu pra casa da senhora dos sonhos. Pulou o portão e invadiu a casa da velha. Fui atrás dele. De canto de olho vi que o Lufe tinha acertado os dois capangas do Carne e que o pai da família estava jogado no chão.
- Boa, Lufe. Não mata o pai.
Pensei comigo e invadi a casa da velha.
BAM!
Gritaria. Entrei pela sala e os gritos vinham do fundo da casa. Na sala, um senhor de uns oitenta anos tinha levado um tiro no peito. Pulei o velho e entrei na cozinha. O safado do Carne estava segurando uma menina de uns dez anos como escudo. Parei na porta. A velha berrava no canto da cozinha. Tinha levado uma coronhada na cabeça. A menina estava em choque.
- Larga a minha neta! Larga a minha neta! Socorro!
- CALA A BOCA, VELHA!!!
BAM!
O canalha teve a coragem de dar um tiro na senhora que ficou estrebuchada no chão. Mantive a calma. Comecei a falar com ele num tom sereno. Eu estava com a Jéssica em riste, pronto pra acertar o vagabundo.
- E aê, covardão! Vai matá a menina também?
- BÁXA A ARMA, DETETIVE!!
- Cê sabe que se você matá a menina, isso vai me dá tempo pra pegá você. E eu não vô te matá. Vô te dá um tiro na mão e depois vô fazê uma entrevista com você.
- LARGA ESSA PORRA DE ARMA!!!
- Você não vai caí na mão da polícia. A parada é comigo. Cê vai ficá lá em casa uns dias. E lá é o último andar antes do inferno.
A coisa começou a ficar em câmera lenta.
- Merda!
Os meus sentidos ficaram mais aguçados. Eu vi o Carne gesticulando a boca, mas não entendia uma palavra. O dedão da mão direita começou a esfregar o gatilho bem devagar. A Jéssica já estava armada. Eu não podia acertar a menina. Havia um espaço milimétrico onde só passava uma bala pra cravar o cérebro do cretino na parede, e eu não podia errar. Num fragmento de tempo senti que o Lufus estava na janela da cozinha. Baixei a arma. As coisas começaram a ficar claras de novo. O Carne não engatilhou o revólver.
- Muito bem, Detetive. Mas quem disse que eu não vô ferrá a menina.
Ele engatilhou a arma.
BAM!
Pedaços de vidro voaram pela cozinha. O Lufus acertou um tiro no ombro direito do Carne e a arma caiu no chão disparando sozinha.
BAM!
Um tiro no meio da geladeira. A menina caiu no chão desmaiada. O Carne ainda tentou pegar a arma com a mão esquerda.
BAM!
Outro tiro. Dessa vez, no ombro esquerdo. Ele caiu rendido no chão. O Lufe entrou pela porta dos fundos.
- Tudo certo, Linhaça?
- Aconteceu de novo.
- O quê?
- A câmera lenta.
- Relaxa, man. Você precisa dormir um pouco.
O Lufe pegou a menina no colo e levou pro Inércia. Eu arrastei o Carne pra fora da casa.
- Já era, Carne. Você não sai do escritório tão cedo.
Do escritório liguei pro chefe de polícia que em dez minutos foi até lá. Amarramos o Carne numa cadeira. Ele estava desmaiado.
- Pode deixar que a gente cuida da menina. O que vocês vão fazer com ele?
- Ou ele abre a boca, ou a gente abre a boca dele.
- Obrigado, detetives. Providenciarei a recompensa pra vocês.
O Tavares se foi com a menina. Levamos o Carne até a cabana do Florestano.
- Olá, detetives. E esse pacote?
- O tal do Carne Seca.
- Uau! Vamos deixá-lo na gaiola um tempo?
- Você precisa retirar as duas balas que estão nos ombros dele e dar um jeito dele não morrer.
- Ele precisa contá pra gente as paradas do carregamento.
- Ok. Vai levar um dia até ele ficar bem. Tudo bem?
- Perfeito. É o tempo que eu preciso pra dormir.
Acendi um cigarro. Fui fazer um café.
- Há! Linhaça, se um dia a gente se aposentá, a gente podia abrir um negócio de sonho, não acha?

FIM

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