Madame Tussaud
3
O
Nono Distrito é um lugar fedorento muito conhecido por seus negócios escusos e
pela marginalia que anda por lá disfarçada de policial. Lá dentro não se sabe
exatamente quem é quem. Todos usam máscaras. Os caras têm conexões com todo
tipo de podridão que brota dos esgotos da cidade. É de lá que jorra a maior
parte da cocaína e do crack que são consumidos no Centro. Eu trabalhei lá um
tempo, no começo da carreira, quando eu ainda era um policialzinho borra-botas.
Comecei até a entender o esquema do negócio. Fiquei quatro anos no distrito e
consegui apenas uma coisa: uma bela butinada na bunda. Arranjei encrenca com um
detetive bem mais velho. O cara já tinha vinte anos de casa e gostava de sair
na madrugada rapelando a molecada, com a ajuda de mais dois safados, o Perna e
o Xarope.
O
negócio é que uma noite, na minha folga, eu tinha saído pra tomar umas biritas
com uns conhecidos num bar perto de casa, e na volta peguei esses três safados
limpando uns piás que estavam marcando touca perto da Av. República Argentina.
Encostei o Inércia uma quadra pra cima, perto de uns sobrados, e fiquei de
butuca entre as árvores. O velhão, detetive Fonseca, reconheci de longe por
causa da cabeleira branca e da pança de cachaça, ficou em pé, encostado no capô
do carro, um chevetinho mequetrefe, branco, ano 79, rebaixado e com todos os
vidros fumê, enquanto os dois cretinos iam até os piás e davam umas bordoadas
em uns e uns chutes nas pernas de outros. Levaram tudo dos guris. Não fiz nada.
Fiquei com medo de ser repreendido. Depois que eles abandonaram o local fui
conversar com os piás, e eis que encontro um conhecido entre eles, um primo
distante, sobrinho da minha mãe,
“Que
Deus a tenha”
que
na hora nem me reconheceu de tão bêbado que estava. Os guris estavam em sete,
seis de pé no muro, mais um deitado numa escada que provavelmente estava
servindo de maca. Deviam estar carregando o guri para casa. Coitado. Estava
mais torto que bambu na ventania. Eu saquei na hora qual era a dos policiais:
sair por aí roubando a piazada que vaga alucinada pelas ruas escuras de
Curitiba. Esse é um bom pretexto. Todo piá quando tem dezesseis, dezessete
anos, sempre tem um baseadinho no bolso, e quando isso não acontece, os canas
arranjam um jeito de te culpar, e aí não tem jeito, você acaba entregando tudo
pra não passar uma noite no distrito e o teu pai ter de ir lá às quatro da
matina e descobrir que o filho fuma um baseadinho com a galera.
Troquei
uma idéia com a molecada, e eles me contaram que estavam vindo de uma festa de
aniversário regada a pinga Tatuzinho e Éter, roubado do laboratório de química
do colégio de um dos organizadores da festa. Falei que era policial e que ia
dar uma ajuda levando-os até em
casa. Nada demais. Enfiei todos no Santanão e os deixei
algumas quadras mais adiante, num condomínio gigante com milhões de blocos.
Condomínio estilo pombal. O mais surreal foi encontrar três amigos deles na
frente do prédio, completamente putos de terem sido roubados pelos mesmos
policiais. Na hora não me contive e comecei a rir. Era muita sacanagem pruma
noite só. Os safados estavam fazendo fila pelo bairro. Os três contaram sua
história triste. Eu anotei todos os detalhes. Talvez, isso fosse me servir pra
alguma coisa. Na hora eu achei que não serviria, fato que depois se tornou
legítimo, quando da minha briga com o tal detetive Fonseca. Nunca mais vi os
moleques, mas a briga com o Fonseca eu não esqueço até hoje. Inclusive, essa
visitinha ao Nono distrito vai deixar muita gente de cabelo em pé.
“Você
vai se vingar de alguém, Detetive?”
“Quem
sabe...”
“Não
seria muito inteligente da sua parte entrar em um distrito querendo apagar
alguém.”
“Quem
disse que eu vou entrar lá?”
Eu
não sei o que o Nono distrito tem a ver com o cachorro da ricaça gostosa, mas
alguma coisa estava me cheirando bem, e de qualquer forma uma visitinha
surpresa aos meus velhos amigos cairia muito bem.
Catei
meu chapéu do cabide; meti a Jéssica no coldre; cigarros; chave do Inércia;
capotão, gravata e óculos escuros.
“Eu
sou, ou não sou, um cowboy, hein Cramunha?”
“Não
esqueça o orgulho, detetive”.
Tranquei
o escritório. Peguei o elevador. O Edifício Asa no final da tarde é meio
bucólico.
“São
seus olhos, Linhares”.
- Foda-se.
Entrei
no Inércia e segui em direção ao Nono distrito.
- Cramunha, o negócio é o seguinte:
nós vâmo chegá lá e você vai me dá a dica, ok? Depois eu me viro.
Eu
sempre levo o Diabo comigo aonde quer que eu vá. Às vezes, ele até que dá umas
dicas certeiras.
Peguei
a Carlos de Carvalho até o final e entrei à esquerda na Arthur Bernardes.
- O caminho até lá vai ser rápido.
Qué pará no Am-Pm pra comê alguma coisa?
Parei
no Am-Pm e mandei um Frango-Burguer com fritas especial e Coca-Cola. O Diabo
ficou no carro. Ele não gosta muito dessas porcarias modernas industriais, diz
que faz mal pra saúde. Eu não estou nem aí pressas bostas. Melhor que cozinhar
no escritório naquele fogareiro à gás medieval. Aqui pelo menos a comida já vem
pronta e não precisa esperar. Eu odeio esperar.
- Quanto deu?
-
- Vintão?
-
- Ok. Pela praticidade té que vale a
pena...
-
- Não, obrigado. Põe na conta uma
carteira de Marlboro Vermelho Box.
-
- Não, o maço amassa o cigarro, fora
que no final ele fica parecendo cigarro de bêbado miserável.
-
- Pois é, eu vi. Dizem que ele tá na
próxima lista de convocados. Acho que o técnico mandô bem. O guri tá comendo a
bola.
-
- Hehe. Não fosse o salário acho que
nenhuma dessas guriazinhas escrotas ia ficá correndo atrás desses piás.
-
- Beleza. Valeu, compadre.
-
- Falou.
Voltei
pro carro. O Cramunhão já estava arrancando as barbas.
“Tem
que ficá de papo com todo mundo...”
“Porra!
Qualé!? O cara é carente! Fica aí nessa merda o dia todo...”
“E
pela empolgação era futebol.”
“Você
tá parecendo minha ex...”
Pensei
e logo fiquei quieto. Lembrei de uns versinhos de um guri de São Paulo que diz:
toda mulher é o Diabo
não há homem que as negue
e todos eles desejam
que o Diabo as carregue
Óbvio,
o Diabo riu.
Segui
a estrada até a frente do Nono distrito.
“Eu
não tenho a mínima idéia do que eu vou fazê aqui. Vou ter de improvisá”.
Olhei
no retrovisor para dar uma arrumada no chapéu.
PAM!
Levei
um susto quando o rosto no espelho era o do detetive Fonseca.
“Essa
é a dica”.
Como
no conto da Cinderela, o Diabo deu uma forcinha e eu me mandei pra dentro do
distrito na maior cara de pau. Fui logo entrando e uns babacas já vieram puxar
meu saco.
- E aê, Fonseca!?
- Qual é?
- Esqueceu alguma coisa?
- Porra, saiu daqui dizendo
que só voltava amanhã de tarde.
- Ficou com saudade da delegacia?
Alguns
riram. Fiquei sério. Cara de mal. Todos se calaram. Pelo jeito o poder do
Fonseca era maior do que eu pensava. Reconheci algumas das figuras ali:
Cardoso, que serviu comigo no 5ºBlog; Genivaldo, bucha de canhão com quase
trinta anos de casa, só pega trabalho boca-podre; Garcia, pistoleiro vagabundo
que limpa chassis de carros roubados; Léco, goleiro do time da delegacia, gente
boa; e o Renato, que já me quebrou alguns galhos, mas que de uns tempos pra cá
começou a fumar a tal da pedra e migrou de lado. Se eu disser que senti saudades
vou estar mentindo, meu desejo é ver essa corja cavando a própria cova.
“Acho
que isso me dá o direito de fuçar aonde eu quiser”.
- Alguém trás pra mim os BOs dos
últimos sete dias que contenham furto, ou roubo, ou assassinato, ou qualquer
bosta sobre gran fina que perdeu o cachorrinho de estimação.
Os
policiais ficaram se olhando.
- Vâmo, porra! Alguém se mexa!
- Mas, chefe, não atendemos nada do
gênero e...
- Então, alguém vai ali no banheiro
rapidinho e caga um pra mim, por gentileza? Cadê a secretária?
“Bosta!
Eu não sei o nome de ninguém”.
- Olha, chefe, a Geruza já saiu faz
algumas horas...O senhor tá bem?
- Não! Tô puto!
“Vô
mandar um chutão. Espero que eu acerte”.
- O negócio é o seguinte: a irmã da
minha mulher tem uma amiga que é parente próxima de um primo dela que tem um
conhecido que é vizinho de um outro primo dele que é casado com a sobrinha de
um dos irmãos daquele amigo nosso detetive o Vargas lá do terceiro distrito que
disse pra mim esses dias que eu precisava me arrumar melhor comprar uns ternos
diferentes e comer menos gordura pra viver um pouquinho mais então entendi o
recado e fui atrás de uma academia e acabei conhecendo o dono da loja de
automóveis da esquina da Kennedy com a Brigadeiro Franco e ele me disse que
precisava da nossa ajuda pra encontrar a cachorra da melhor amiga da filha dele
que estuda no colégio Bom Jesus e que não dorme há dias por causa do sumiço da
cadela e a mãe que tem uma loja de jóias na Av. do Batel não agüenta mais a
filha enchendo o saco de noite e de dia por isso eu preciso do BO agora nem que
você tenha que parir um pelo nariz! Você me entendeu?
Ficou
todo mundo com aquela cara de paisagem morta.
“Golaço!”
Nisso
entra um guri de uns vinte anos correndo pela porta.
- Tá aqui chefe.
- O que?
- O BO que o senhor pediu.
- E onde você conseguiu isso?
- Entrei no sistema integrado das
polícias, e descobri que o BO foi feito por um homem, e não por uma mulher, há
dois dias, no Segundo distrito, e que o cachorro é um poodle de olhos verdes...
“As
esmeraldas...”
- ...com uma faixa no pescoço...
- OK!!! Se tá tudo escrito aí,
porque você tá me contando tudo de novo? Parece burro! Me dá aqui esse troço!
Arranquei
o relatório da mão do piá. Ele era bom. Não fosse o meu disfarce eu mandaria
ele embora. A polícia não precisa de caras bons como ele.
“Será
que se você pedir pra ele comer o côco dele, ele come?”
- Cala a boca, Cramunha!
- Foi mal, chefe.
- Não você, porra!
- Quem é Cramunha, chefe?
- Pára de me chamar de chefe,
cacete!
- Mas foi o senhor que mandou todo
mundo te chamar de chefe.
- Ok. Então, a partir de hoje todo
mundo pode me chamar de bróder, e não precisa mais ficar pedindo licença pra
entrá na minha sala, eu acho isso um saco, e pode usar o meu banheiro numa boa,
e o expediente será reduzido em uma hora nos plantões, e avisa a Geruza que é
pra mudá a porra da marca do café, que esse aqui não serve nem pra reserva de
gandula, e bota pizza pra todo mundo, inclusive pros presos, toda quarta-feira,
beleza?
Os
caras começaram uma ovação absurda. Mais me pareceu que o clube de cada um
havia sido campeão naquela mesma hora, todos ao mesmo tempo.
“Você
é um tremendo filho da puta, Linhares...mas eu gosto disso”.
“Eu
sei ser um cara legal vez ou outra”.
Quando
eu vi já tinha um pendurado no telefone com uma lista interminável de pizzas,
nos sabores mais esdrúxulos possíveis.
“Hehe”
Voltei
pro escritório. Passei um café. Sentei na minha mesa e parei para analisar o
BO. Um milhão de coisas passaram pela minha cabeça.
“Não
tenho a mínima idéia de onde achar esse maldito cão!”
Reli
trezentas vezes o BO e as letrinhas começaram a conversar comigo. Não agüentei
e apaguei. Acordei de manhã com uma vontade absurda de encontrar uma pessoa.
Ela mora no primeiro andar: Madame Toussaud.
(continua)
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