quinta-feira, 12 de abril de 2012

Breve Obituário Cotidiano


Madame Tussaud

3

O Nono Distrito é um lugar fedorento muito conhecido por seus negócios escusos e pela marginalia que anda por lá disfarçada de policial. Lá dentro não se sabe exatamente quem é quem. Todos usam máscaras. Os caras têm conexões com todo tipo de podridão que brota dos esgotos da cidade. É de lá que jorra a maior parte da cocaína e do crack que são consumidos no Centro. Eu trabalhei lá um tempo, no começo da carreira, quando eu ainda era um policialzinho borra-botas. Comecei até a entender o esquema do negócio. Fiquei quatro anos no distrito e consegui apenas uma coisa: uma bela butinada na bunda. Arranjei encrenca com um detetive bem mais velho. O cara já tinha vinte anos de casa e gostava de sair na madrugada rapelando a molecada, com a ajuda de mais dois safados, o Perna e o Xarope.
O negócio é que uma noite, na minha folga, eu tinha saído pra tomar umas biritas com uns conhecidos num bar perto de casa, e na volta peguei esses três safados limpando uns piás que estavam marcando touca perto da Av. República Argentina. Encostei o Inércia uma quadra pra cima, perto de uns sobrados, e fiquei de butuca entre as árvores. O velhão, detetive Fonseca, reconheci de longe por causa da cabeleira branca e da pança de cachaça, ficou em pé, encostado no capô do carro, um chevetinho mequetrefe, branco, ano 79, rebaixado e com todos os vidros fumê, enquanto os dois cretinos iam até os piás e davam umas bordoadas em uns e uns chutes nas pernas de outros. Levaram tudo dos guris. Não fiz nada. Fiquei com medo de ser repreendido. Depois que eles abandonaram o local fui conversar com os piás, e eis que encontro um conhecido entre eles, um primo distante, sobrinho da minha mãe,
“Que Deus a tenha”
que na hora nem me reconheceu de tão bêbado que estava. Os guris estavam em sete, seis de pé no muro, mais um deitado numa escada que provavelmente estava servindo de maca. Deviam estar carregando o guri para casa. Coitado. Estava mais torto que bambu na ventania. Eu saquei na hora qual era a dos policiais: sair por aí roubando a piazada que vaga alucinada pelas ruas escuras de Curitiba. Esse é um bom pretexto. Todo piá quando tem dezesseis, dezessete anos, sempre tem um baseadinho no bolso, e quando isso não acontece, os canas arranjam um jeito de te culpar, e aí não tem jeito, você acaba entregando tudo pra não passar uma noite no distrito e o teu pai ter de ir lá às quatro da matina e descobrir que o filho fuma um baseadinho com a galera.
Troquei uma idéia com a molecada, e eles me contaram que estavam vindo de uma festa de aniversário regada a pinga Tatuzinho e Éter, roubado do laboratório de química do colégio de um dos organizadores da festa. Falei que era policial e que ia dar uma ajuda levando-os até em casa. Nada demais. Enfiei todos no Santanão e os deixei algumas quadras mais adiante, num condomínio gigante com milhões de blocos. Condomínio estilo pombal. O mais surreal foi encontrar três amigos deles na frente do prédio, completamente putos de terem sido roubados pelos mesmos policiais. Na hora não me contive e comecei a rir. Era muita sacanagem pruma noite só. Os safados estavam fazendo fila pelo bairro. Os três contaram sua história triste. Eu anotei todos os detalhes. Talvez, isso fosse me servir pra alguma coisa. Na hora eu achei que não serviria, fato que depois se tornou legítimo, quando da minha briga com o tal detetive Fonseca. Nunca mais vi os moleques, mas a briga com o Fonseca eu não esqueço até hoje. Inclusive, essa visitinha ao Nono distrito vai deixar muita gente de cabelo em pé.
“Você vai se vingar de alguém, Detetive?”
“Quem sabe...”
“Não seria muito inteligente da sua parte entrar em um distrito querendo apagar alguém.”
“Quem disse que eu vou entrar lá?”
Eu não sei o que o Nono distrito tem a ver com o cachorro da ricaça gostosa, mas alguma coisa estava me cheirando bem, e de qualquer forma uma visitinha surpresa aos meus velhos amigos cairia muito bem.
Catei meu chapéu do cabide; meti a Jéssica no coldre; cigarros; chave do Inércia; capotão, gravata e óculos escuros.
“Eu sou, ou não sou, um cowboy, hein Cramunha?”
“Não esqueça o orgulho, detetive”.
Tranquei o escritório. Peguei o elevador. O Edifício Asa no final da tarde é meio bucólico.
“São seus olhos, Linhares”.
            - Foda-se.
Entrei no Inércia e segui em direção ao Nono distrito.
            - Cramunha, o negócio é o seguinte: nós vâmo chegá lá e você vai me dá a dica, ok? Depois eu me viro.
Eu sempre levo o Diabo comigo aonde quer que eu vá. Às vezes, ele até que dá umas dicas certeiras.
Peguei a Carlos de Carvalho até o final e entrei à esquerda na Arthur Bernardes.
            - O caminho até lá vai ser rápido. Qué pará no Am-Pm pra comê alguma coisa?
Parei no Am-Pm e mandei um Frango-Burguer com fritas especial e Coca-Cola. O Diabo ficou no carro. Ele não gosta muito dessas porcarias modernas industriais, diz que faz mal pra saúde. Eu não estou nem aí pressas bostas. Melhor que cozinhar no escritório naquele fogareiro à gás medieval. Aqui pelo menos a comida já vem pronta e não precisa esperar. Eu odeio esperar.
            - Quanto deu?
            -
            - Vintão?
            -
            - Ok. Pela praticidade té que vale a pena...
            -
            - Não, obrigado. Põe na conta uma carteira de Marlboro Vermelho Box.
            -
            - Não, o maço amassa o cigarro, fora que no final ele fica parecendo cigarro de bêbado miserável.
            -
            - Pois é, eu vi. Dizem que ele tá na próxima lista de convocados. Acho que o técnico mandô bem. O guri tá comendo a bola.
            -
            - Hehe. Não fosse o salário acho que nenhuma dessas guriazinhas escrotas ia ficá correndo atrás desses piás.
            -
            - Beleza. Valeu, compadre.
            -
            - Falou.
Voltei pro carro. O Cramunhão já estava arrancando as barbas.
“Tem que ficá de papo com todo mundo...”
“Porra! Qualé!? O cara é carente! Fica aí nessa merda o dia todo...”
“E pela empolgação era futebol.”
“Você tá parecendo minha ex...”
Pensei e logo fiquei quieto. Lembrei de uns versinhos de um guri de São Paulo que diz:
toda mulher é o Diabo
não há homem que as negue
e todos eles desejam
que o Diabo as carregue

Óbvio, o Diabo riu.
Segui a estrada até a frente do Nono distrito.
“Eu não tenho a mínima idéia do que eu vou fazê aqui. Vou ter de improvisá”.
Olhei no retrovisor para dar uma arrumada no chapéu.
PAM!
Levei um susto quando o rosto no espelho era o do detetive Fonseca.
“Essa é a dica”.
Como no conto da Cinderela, o Diabo deu uma forcinha e eu me mandei pra dentro do distrito na maior cara de pau. Fui logo entrando e uns babacas já vieram puxar meu saco.
- E aê, Fonseca!?
- Qual é?
- Esqueceu alguma coisa?
- Porra, saiu daqui dizendo que só voltava amanhã de tarde.
- Ficou com saudade da delegacia?
Alguns riram. Fiquei sério. Cara de mal. Todos se calaram. Pelo jeito o poder do Fonseca era maior do que eu pensava. Reconheci algumas das figuras ali: Cardoso, que serviu comigo no 5ºBlog; Genivaldo, bucha de canhão com quase trinta anos de casa, só pega trabalho boca-podre; Garcia, pistoleiro vagabundo que limpa chassis de carros roubados; Léco, goleiro do time da delegacia, gente boa; e o Renato, que já me quebrou alguns galhos, mas que de uns tempos pra cá começou a fumar a tal da pedra e migrou de lado. Se eu disser que senti saudades vou estar mentindo, meu desejo é ver essa corja cavando a própria cova. 
“Acho que isso me dá o direito de fuçar aonde eu quiser”.
            - Alguém trás pra mim os BOs dos últimos sete dias que contenham furto, ou roubo, ou assassinato, ou qualquer bosta sobre gran fina que perdeu o cachorrinho de estimação.
Os policiais ficaram se olhando.
            - Vâmo, porra! Alguém se mexa!
            - Mas, chefe, não atendemos nada do gênero e...
            - Então, alguém vai ali no banheiro rapidinho e caga um pra mim, por gentileza? Cadê a secretária?
“Bosta! Eu não sei o nome de ninguém”.
            - Olha, chefe, a Geruza já saiu faz algumas horas...O senhor tá bem?
            - Não! Tô puto!
“Vô mandar um chutão. Espero que eu acerte”.
            - O negócio é o seguinte: a irmã da minha mulher tem uma amiga que é parente próxima de um primo dela que tem um conhecido que é vizinho de um outro primo dele que é casado com a sobrinha de um dos irmãos daquele amigo nosso detetive o Vargas lá do terceiro distrito que disse pra mim esses dias que eu precisava me arrumar melhor comprar uns ternos diferentes e comer menos gordura pra viver um pouquinho mais então entendi o recado e fui atrás de uma academia e acabei conhecendo o dono da loja de automóveis da esquina da Kennedy com a Brigadeiro Franco e ele me disse que precisava da nossa ajuda pra encontrar a cachorra da melhor amiga da filha dele que estuda no colégio Bom Jesus e que não dorme há dias por causa do sumiço da cadela e a mãe que tem uma loja de jóias na Av. do Batel não agüenta mais a filha enchendo o saco de noite e de dia por isso eu preciso do BO agora nem que você tenha que parir um pelo nariz! Você me entendeu?
Ficou todo mundo com aquela cara de paisagem morta.
“Golaço!”
Nisso entra um guri de uns vinte anos correndo pela porta.
            - Tá aqui chefe.
            - O que?
            - O BO que o senhor pediu.
            - E onde você conseguiu isso?
            - Entrei no sistema integrado das polícias, e descobri que o BO foi feito por um homem, e não por uma mulher, há dois dias, no Segundo distrito, e que o cachorro é um poodle de olhos verdes...
“As esmeraldas...”
            - ...com uma faixa no pescoço...
            - OK!!! Se tá tudo escrito aí, porque você tá me contando tudo de novo? Parece burro! Me dá aqui esse troço!
Arranquei o relatório da mão do piá. Ele era bom. Não fosse o meu disfarce eu mandaria ele embora. A polícia não precisa de caras bons como ele.
“Será que se você pedir pra ele comer o côco dele, ele come?”
            - Cala a boca, Cramunha!
            - Foi mal, chefe.
            - Não você, porra!
            - Quem é Cramunha, chefe?
            - Pára de me chamar de chefe, cacete!
            - Mas foi o senhor que mandou todo mundo te chamar de chefe.
            - Ok. Então, a partir de hoje todo mundo pode me chamar de bróder, e não precisa mais ficar pedindo licença pra entrá na minha sala, eu acho isso um saco, e pode usar o meu banheiro numa boa, e o expediente será reduzido em uma hora nos plantões, e avisa a Geruza que é pra mudá a porra da marca do café, que esse aqui não serve nem pra reserva de gandula, e bota pizza pra todo mundo, inclusive pros presos, toda quarta-feira, beleza?
Os caras começaram uma ovação absurda. Mais me pareceu que o clube de cada um havia sido campeão naquela mesma hora, todos ao mesmo tempo.
“Você é um tremendo filho da puta, Linhares...mas eu gosto disso”.
“Eu sei ser um cara legal vez ou outra”.
Quando eu vi já tinha um pendurado no telefone com uma lista interminável de pizzas, nos sabores mais esdrúxulos possíveis.
“Hehe”
Voltei pro escritório. Passei um café. Sentei na minha mesa e parei para analisar o BO. Um milhão de coisas passaram pela minha cabeça.
“Não tenho a mínima idéia de onde achar esse maldito cão!”
Reli trezentas vezes o BO e as letrinhas começaram a conversar comigo. Não agüentei e apaguei. Acordei de manhã com uma vontade absurda de encontrar uma pessoa. Ela mora no primeiro andar: Madame Toussaud.

 (continua)

Nenhum comentário:

Postar um comentário